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13 vezes Natalia Ginzburg sobre escrita, vida e destino

Guilherme Dearo

A genial escritora italiana (1916-1991) fala sobre ser criança, ser adulta, ser artista, ser e estar no mundo e encarar seus desígnios e destinos nas páginas do clássico "As Pequenas Virtudes"



I. Há certa uniformidade monótona nos destinos dos homens. Nossa existência se desenvolve segundo leis antigas e imutáveis, segundo uma cadência própria, uniforme e antiga. Os sonhos nunca se realizam, e assim que os vemos em frangalhos compreendemos subitamente que as alegrias maiores de nossa vida estão fora da realidade. Assim que os vemos em pedaços, nos consumimos de saudade pelo tempo em que ferviam em nós. Nossa sorte transcorre nessa alternância de esperanças e nostalgias.


II. Quando era menina, murmurava certas melodias que eu mesma inventava. Era uma longa melopeia lamentosa, que me enchia os olhos de lágrimas.


III. Não há paz para o filho do homem. As raposas e os lobos têm seus covis, mas o filho do homem não tem onde pousar a cabeça. Nossa geração é uma geração de homens. Não é uma geração de raposas e de lobos. Cada um de nós teria grande vontade de pousar a cabeça em algum lugar, cada um gostaria de ter uma pequena toca enxuta e aquecida. Mas não há paz para os filhos dos homens. Cada um de nós uma vez na vida se iludiu achando que podia dormir sobre qualquer coisa, apressar-se de uma certeza qualquer, de uma fé qualquer, e então repousar o corpo. Mas todas as certezas de antes nos foram arrancadas, e a fé jamais será algo em que enfim se possa mergulhar no sono.


IV. Até então sempre me acontecera de escrever depressa, e coisas bastante breves: e a certa altura, acho que até entendi por quê. Porque tenho irmãos bem mais velhos que eu, e quando era pequena, se eu falasse na mesa, sempre me mandavam ficar calada. Assim me habituei a dizer sempre as coisas muito depressa, de um jato só e com o menor número possível de palavras, sempre com medo de que os outros recomeçassem a falar entre si e deixassem de me escutar.


V. Nossa felicidade ou infelicidade pessoal, nossa condição terrestre, tem uma grande importância em relação àquilo que escrevemos. Disse antes que, no momento em que alguém escreve, é miraculosamente impelido a ignorar as circunstâncias presentes da própria vida. Certamente é assim. Mas ser feliz ou infeliz nos leva a escrever de maneiras distintas. Quando somos felizes, nossa fantasia tem mais força; quando somos infelizes, então é nossa memória que age com mais vivacidade. O sofrimento torna a fantasia fraca e preguiçosa; ela se move, mas desinteressadamente e com langor, com o movimento frágil dos doentes.


VI. Diante das coisas que escrevemos, há um perigo na dor, assim como há um perigo na felicidade. Porque a beleza poética é uma mistura de crueldade, de soberba, de ironia, de ternura carnal, de fantasia e de memória, de clareza e de obscuridade e, se não conseguirmos obter todo esse conjunto, nosso resultado será pobre, precário, escassamente vital.


VII. Começamos a nos calar desde jovens, à mesa, diante dos nossos pais, que ainda nos falavam com aquelas velhas palavras sangrentas e pesadas. Ficávamos calados. Ficávamos calados em protesto e por desdém. Ficávamos calados para que nossos pais entendessem que suas palavras gordas não nos serviam mais. Tínhamos outras guardadas no estoque. Ficávamos calados e cheios de confiança em nossas palavras. Gastaríamos essas novas palavras mais tarde, com gente que as entenderia. Éramos ricos do nosso silêncio. Agora ele nos causa vergonha e desespero, e conhecemos toda sua miséria. Nunca mais nos libertamos dele.


VIII. Quando nos submetemos à psicanálise, nos dizem que devemos parar de odiar tão fortemente a nós mesmos. Porém, para nos libertarmos desse ódio, para nos libertarmos de sentimento de culpa, do sentimento de pânico, do silêncio, nos é sugerido viver segundo a natureza, nos abandonarmos ao nosso instinto, seguir nosso puro prazer: fazer da vida uma pura escolha. Mas fazer da vida uma pura escolha não é viver segundo a natureza, é viver contra a natureza, porque não é dado ao homem escolher sempre; o homem não escolheu a hora de seu nascimento; nem o próprio rosto, nem os próprios pais, nem a própria infância: o homem não escolhe, no mais das vezes, a hora de sua morte. O homem então só pode aceitar o próprio rosto, assim como só pode aceitar o próprio destino: é a única escolha que lhe é permitida é aquela entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, entre a verdade e a mentira.


IX. Jamais como hoje a sorte dos homens esteve tão estreitamente conectada, umas às outras, de modo que o desastre de um é o desastre de todos. Então se verifica esse fato estranho: que os homens se encontram estreitamente ligados uns ao destino dos outros, de modo que a queda de um arrasta milhares de outros seres, e ao mesmo tempo todos estão sufocados pelo silêncio, incapazes de trocar uma palavra em liberdade.


X. E agora somos verdadeiramente adultos - pensamos - e nos sentimos surpresos de que ser adulto seja isso, e não tudo aquilo que acreditávamos na juventude, não a segurança de si, nem a posse serena de todas as coisas da terra. Somos adultos porque temos nos ombros a presença muda das pessoas mortas, a quem pedimos um juízo sobre nosso comportamento atual, a quem pedimos perdão pelas ofensas passadas; gostaríamos de arrancar do nosso passado tantas palavras cruéis que dissemos, tantos gestos cruéis que fizemos, quando ainda temíamos a morte, mas não sabíamos, não tínhamos entendido como era irreparável e sem remédio, a morte: somos adultos por todas as respostas mudas, pelo perdão calado dos mortos que trazemos dentro de nós.


XI. (...) e nos parece que sempre poderemos reencontrar aquele momento secreto, buscar ali as palavras para o nosso ofício, nossas palavras para o próximo; olhar o próximo com olhos sempre justos e livres, não com o olhar temeroso ou arrogante de quem sempre se pergunta, em presença do próximo, se ele será seu senhor ou seu servo. Durante toda a vida só soubemos ser senhores ou servos: mas naquele nosso momento secreto, naquele momento de pleno equilíbrio, soubemos que não há verdadeiro senhorio nem verdadeira servidão sobre a terra.


XII. Sofremos, nos lamentamos e cochichamos perguntas suspeitosas, mesmo já sabendo tão bem como se desenvolve a longa cadeia das relações humanas, sua longa parábola necessária, toda a longa estrada que nos cabe percorrer para chegar a ter um pouco de misericórdia.


XIII. No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deva ensinar a eles não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber.


Trechos de "As Pequenas Virtudes", de Natalia Ginzburg. Companhia das Letras, 2020. Trad. Maurício Santana Dias.


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