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Guilherme Dearo

A fuga do desejo e a figura de Lídia nas odes de Ricardo Reis

Atualizado: 28 de jun.

Três odes de Reis e a presença de Lídia diante do heterônimo de Fernando Pessoa



Fernando Pessoa (1888-1935), na análise de Massaud Moisés, “não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel do século XX” (2018, p. 331). Em Pessoa


Tudo se passa como se ele, fenomenologicamente colocado diante do mundo, tentasse, reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes sofridos pelos homens no curso da História e sentindo-os como descoberta “pura”, isenta das anteriores deformações intelectuais. (Ibid., p. 333)


Daí, surge o fenômeno de seus heterônimos. O poeta necessita multiplicar-se em quantos seres se faz urgente, buscando aproximar-se da imagem do Universo como um todo. Mas, “ao proceder a multiplicação interior, como se fosse um imenso poliedro, o poeta paga um alto preço: o de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração do ‘eu’” (Ibid). Diz Moisés:


Os heterônimos constituem, por isso, meios de conhecer a complexidade do real, impossível para uma única pessoa. O poeta não poderia, obviamente, multiplicar-se em número igual aos seres viventes nas três dimensões temporais. Em vez disso, multiplica-se em heterônimos-símbolos, como se lhe fosse possível chegar a cosmovisões arquetípicas (...). (2018, p. 334)


Um de seus heterônimos mais estabelecidos é Ricardo Reis. Pessoa o descreve como um homem nascido no Porto, médico de profissão e latinista. Ele, diz Teresa Rita Lopes, é o heterônimo responsável por “repudiar o cristianismo e defender o objetivismo, privilegiando o lado de Fora em relação ao de Dentro, o objetivismo pagão contra o subjetivismo cristista” (2018, Ebook, Posição 216). Reis, que tem outro heterônimo, Alberto Caeiro, como mestre, também parte de “sensações” para erigir sua poética, mas


coloca o pensamento como fator inerente à criação artística (...). O poeta considera-se neoclássico, pautando-se pela ideia de disciplina, mas uma disciplina natural, espontânea, a serviço do pensamento. (...) A ânsia de harmonia e equilíbrio na arte poética leva-o a elaborar poemas onde ocorra o rigor em sua construção - um poema formalmente tão gracioso e pleno quanto o pensamento que o motiva (...). (ABDALA JR, PASCHOALIN, 1990, pp. 143-144)


O heterônimo Reis, analisa Moisés,


simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum paganismo da decadência, anterior à noção de pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações. (2018, p. 335)


Em suas odes, aparecem com regularidade as figuras femininas de Neera, Cloe e Lídia. Tais referências são acenos de Reis, neoclássico, ao ídolo latino Horário, que fala dessas três mulheres ao longo de sua obra. Para Ferreira (2001, p. 258), as constantes citações a Neera, Cloe e Lídia permitem que enxerguemos suas presenças como elementos textuais significativos, sendo que Lídia é a mais citada. Contudo, há diferença entre esses três nomes em Horário e em Reis:


Na poesia de Horácio, as três mulheres têm figuras distintas, porque também é diferente o tom de voz que o poeta assume. (...) Nos poemas de Ricardo Reis, as figuras femininas perdem os contornos corpóreos e as variações de carácter, transformando-se em “presenças quase metafísicas”, como diz Isabel Allegro de Magalhães (FERREIRA, 2001, p. 258)


Embora fiquemos a analisar três odes, as de número 12, 20 e 37 (presentes no Livro Segundo, conforme organização de Teresa Rita Lopes [1]), é importante ressaltar que a figura de Lídia não se restringe a estes três momentos, mas aparece em outras odes de Reis. Em uma de suas mais famosas odes, por exemplo, o poeta Reis fala a Lídia: “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.” [2]. Aqui, Reis consegue resumir a sua visão racional do mundo. Se tudo passa e todos temos o mesmo destino, melhor será passar calmo como um rio a viver desassossegado e cansado: "Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos / Que a vida passa [...]" e "Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. / Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. / Mais vale saber passar silenciosamente / E sem desassossegos grandes.".


Na ode 12, Reis fala diretamente a Lídia, angustiado: “Sofro, Lídia, do medo do destino”. Ele não quer transformação e mudança, pois cada detalhe perturba o seu estado de contenção e serenidade. Até uma “leve pedra que um momento ergue / As lisas rodas do meu carro” o afeta, pois “aterra / Meu coração”. Ele vaticina: “Tudo quanto me ameace de mudar-me / Para melhor que seja, odeio e fujo.”. Mesmo uma transformação positiva em sua vida, como a chegada de um novo amor, é motivo para ódio e fuga. Cerebral, Reis conclui com um pedido aos deuses, clamando por uma vida “Sem renovar” e por dias que passem “Ficando eu sempre quasi o mesmo”, levando-o com naturalidade à velhice como “um dia entra / No anoitecer”. Aqui, Lídia só escuta e é posta, indiretamente, como a figura que poderia causar o desequilíbrio que Reis tanto abomina. A possibilidade de Lídia como Amor é afastada.


A linguagem de Reis é clara, contida, sem excessos e afetações. Longe do drama moderno, prefere a disciplina estética das formas neoclássicas. A ode traz três partes iguais de quatro versos cada em perfeita harmonia, sempre com os três primeiros versos decassílabos e, os quartos, trissílabos. A ode ganha ritmo com as sonoridades finais dos versos. “Destino” se liga a “fujo” e “indo”, enquanto “ergue” se liga a “mudar-me”, “sempre” e “passe”, e “aterra” se liga a “entra”. A ode também ganha ritmo e musicalidade com certas aliterações, como os sons nos primeiros versos de “Lídia”, “leve” e “lisas” ou os sons em “medo”, “um”, “momento”, “meu”, “ameace”, “mudar-me”, “melhor”, “minha”, “sempre” e “sem”. “Reis preconiza que o verso seja sempre regido pelo pensamento - e que o ritmo, e a consequente música, dele decorram”, explica Lopes (2018, Ebook, Posição 237).


Na ode 20, novamente Reis tem Lídia como ouvinte, mas o “diálogo” parece mais direto e sua presença é mais marcante, pois ele precisa refletir sobre algo que pode ou não haver entre eles: o amor. Parece que a ode necessita de um grande poder de convencimento e argumento para rebater um desejo de Lídia inominado, anterior ao fato presente da ode, ideia esta fora dos ouvidos alheios que provoca a racionalização de Reis. Em três estrofes de quatro versos cada, Reis traça uma linha de pensamento em oração única. Na paisagem serena, Reis enxerga que se os dois, como casal, vão pelo prado, o amor entre eles “é um terceiro ali”. Esse amor não é inocente, tampouco deixa de interferir em suas vidas - interferência negativa, como Reis deixa claro. Para ele, o amor entre eles “usurpa que saibamos / Um ao certo do outro,”. Para Reis, o amor cega em vez de esclarecer. Sob o véu da paixão desmedida, o outro não pode ser mais visto em sua verdade e inteireza. O terceiro elemento é disruptivo, não integrativo.


Para o poeta, há uma contradição que não pode ser resolvida: se há o amor, ele só poderá falar do amor, não da figura amada à sua frente: “De tão sentir o amor não sei dizer-to”. Falar do amor, para Reis, seria falar em metáfora, dos prados, restando apenas o discurso do amor, não o sentimento em si. O poeta acredita que o amor oprime o ser humano e lhe impõe limitações. Se não deseja nada, se não ama nada, pode-se ser livre. Também na ode 20, Reis mantém ritmo e musicalidade com aliterações de sons como o “s” (vamos, prados, nosso, saibamos, certo, nesse, vemos, mesmo, sem, vermos, essência) e o “m” (momento, em, vamos, amor, saibamos, vemos, mesmo, comum), além de sons finais como prados/saibamos, dizer-to/falo/comigo e outro/momento/comigo.


A ode 37 traz um Reis mais lamentoso, onde Lídia volta ao papel de ouvinte de um Reis que contempla e reflete. Não há, como na ode 20, referência direta à possibilidade de um amor entre eles. Reis reforça o poder acima dos homens: o fado. Este é “Sorte / Hoje, Destino sempre,”. É tal sorte ou destino, “quer o procuremos, / Quer o speramos”, que decide os nossos dias. Assim, “Dia após dia a mesma vida é a mesma”. Reis parece enxergar uma banalidade de qualquer tentativa de impor vontades ao fluxo constante da vida e o amor, claramente, é uma destas forças que seriam desperdiçadas. Tirar algo da vida é, obrigatoriamente, ver tal perecer. Mais: qualquer ato parece inútil, diante de resultados similares e inevitáveis (“Colhido, o fruto deperece; / e cai / Nunca sendo colhido.”). Se se tira o amor, este só pode acabar. Tal fato é tão objetivo quanto a inescusabilidade e invencibilidade do fado.


Como fala Lopes, ele ensina uma “arte de passar”, ou seja, de viver pela Terra como quem passa, sem saltos e contratempos. Reis “aplica-se a ensinar os principais preceitos do que poderíamos chamar uma arte de passar, aceitando o que os deuses - e, acima deles, o destino - decidam” (2018, Ebook, Posição 365). A ode, novamente, se pauta pelo ritmo ordenado: cinco duplas de versos marcam a argumentação da ode, com finais sonoros como decorre/Sorte, colhido/invencível, somos/procuremos e mesma/nessa.


Em comum às odes, é possível identificar o desejo de Reis, em três tempos, de buscar o sossego, não a ação. Ele não quer envolvimento com o mundo em suas paixões, preferindo a razão. O afeto e o desejo, logo a mudança, podem levar à frustração. Para ele, é melhor fugir às grandes paixões, evitando se comover. Diante da finitude da vida, ele entende que acima de todos os homens estão os deuses e, depois, o fado - o Destino, como enfatiza na ode 37. Tragada para essa dimensão de amenidade, a figura feminina de Lídia, que na visão romântica ou moderna poderia ser intensamente dramatizada, serve como elemento retórico para o pensamento racional e argumentativo de Reis.


Tais visões presentes nestas odes condizem com a descrição que o irmão de Reis, Frederico, fez dele em Prefácio ao livro “Vida e Obra de Ricardo Reis", preconizado por Pessoa. Frederico enfatiza no irmão o que as odes elucidam: “Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis. (...). Não deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas”; “Buscando um mínimo de dor ou pena, o homem deve procurar sobretudo a calma, a tranquilidade, abstendo-se do esforço e da actividade útil”; “A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer.” (PESSOA, LOPES, 2018, Ebook, Posições 488-294)


Torna-se evidente, nestas três odes, que Lídia não tem voz, embora escute o que Reis tem a dizer e a ele se disponha. Sua função, passiva, é a de ouvinte - não obstante se possa dizer que o ato de ouvir é ato ativo e induz o interlocutor Reis a expressar coisas que, sem a sua presença atenta, não expressaria. De qualquer modo, a relação é desigual. “Lídia é, sobretudo, uma companheira de viagem, uma presença silente e silenciada que ouve, sem responder e sem agir, os conselhos sapientes de uma voz masculina dominadora”, escreve Ferreira (2001, p. 259). Ao contrário daquela outra Lídia em textos de Horácio, a Lídia pessoana nunca tem voz na poesia de Ricardo Reis (ibid.).


Como mostram as odes, não há promessa de amor romântico entre Reis e Lídia, tampouco consumação. Amar Lídia como mulher concreta significa transformação e mudança, e isto Reis não se permite (ode 12). Amar Lídia também significa deixar-se interpor por tal força, a ela se submetendo identidades e visões, e isto Reis também não se permite (ode 20). Também, diante do ato de amar que parece banal, pois um dia acaba, e por não ditar os dias como dita a todos o fado, Reis não se impressiona (ode 37). Assim,


No fundo, Lídia permite a Ricardo Reis uma reflexão sobre o amor e a ficcionalização de uma possibilidade constantemente recusada. (FERREIRA 2001, p. 260) //


NOTAS


[1] Conforme numeração e versões organizadas por Teresa Rita Lopes em: PESSOA, F., LOPES, T. R. (ed.). Vida e Obra de Ricardo Reis. São Paulo: Global, 2018. Ebook.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABDALA JR, B., PASCHOALIN, M. A. História Social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.


FERREIRA, A. M. “As Vozes de Lídia”. Ágora - Estudos Clássicos em Debate, Universidade de Aveiro, n.3, 2001, pp. 247-268.


MOISÉS, M. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2018.


PESSOA, F., LOPES, T. R. (ed.). Vida e Obra de Ricardo Reis. São Paulo: Global, 2018. Ebook.


Site - Arquivo Pessoa - http://arquivopessoa.net/textos/3427

 

Citação: DEARO, Guilherme. "A fuga do desejo e a figura de Lídia nas odes de Ricardo Reis". São Paulo: FFLCH/USP, junho de 2022.


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