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  • Guilherme Dearo

Antropofagia e Pau-Brasil: as fronteiras do eu em Oswald de Andrade

Atualizado: 28 de jun.

Os limiares da crítica e as diferentes visões sobre "Pau-Brasil" e o Manifesto Antropófago



Inserido no contexto do modernismo brasileiro, o paulistano Oswald de Andrade (1890-1954) viu sua produção literária diante de uma encruzilhada que não podia ser ignorada, a saber a questão colocada de duas tarefas de difícil compatibilidade: “criar uma nova poesia e arte realmente nacionais, brasileiras, e empregar para tanto os recursos das vanguardas europeias, da França e da Itália” (CARPEAUX, 2012, p. 149). Se ser “modernista” significava um código novo, diferente dos códigos parnasiano e simbolistas que dominavam as letras brasileiras, código que precisava ser novo em formas, motivos, temas e mitos (BOSI, 2017, p. 354), o modernismo desenvolvido no Brasil estava dividido entre


“a ânsia de acertar o passo com a modernidade da Segunda Revolução Industrial, de que o futurismo foi testemunho vibrante, e a certeza de que as raízes brasileiras, em particular, indígenas e negras, solicitavam um tratamento estético, necessariamente primitivista”. (BOSI, 2017, p. 364)


Dois manifestos publicados por Oswald de Andrade na década de 1920 resumem como o autor enxergava a possível resolução para a questão e como sua literatura pretendia indicar o caminho modernista no Brasil. De 1924, o “Manifesto da Poesia Pau Brasil” (publicado originalmente no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, em 18 de março) propõe novos princípios para a poesia: a fusão de elementos cultos e populares e a incorporação do cotidiano e do registro da oralidade (SCHWARTZ, ANDRADE, 2017, p. 5). Como apontam Roberto Schwartz e Gênese Andrade, “Oswald defende uma revisão cultural do país a partir da valorização do elemento primitivo tão presente em nosso cotidiano, na esteira do que fizeram os cubistas europeus ao tê-lo como suporte estético-exótico” (2017, p. 5).


Já no célebre “Manifesto Antropófago”, publicado em maio de 1928 na primeira edição da Revista de Antropofagia, Oswald, impulsionado pelo quadro “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, propõe


“assimilar as qualidades do inimigo estrangeiro para fundi-las às nacionais (...), apresenta uma síntese dialética que procura resolver a questão da dependência cultural, por meio da transculturação. Suas fontes explícitas são Marx, Freud, Breton, Montaigne e Rousseau, a partir das quais relê a história do Brasil, privilegiando elementos das matrizes indígena e africana, repudiando a imposição da cultura europeia e valorizando a cultura popular (...)”. (SCHWARTZ, ANDRADE, 2017, p. 7)


Naquele texto (1), Oswald de Andrade insere o elemento nacional original, os povos autóctones (“Tupi or not tupi, that is the question”, p. 39), argumentando a favor de uma originalidade no tratamento da questão, e resume a ideia do ritual antropofágico: deglutir o outro, incorporar o outro, criar o novo a partir do que é de si próprio e do que é do outro. São célebres algumas passagens: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” (p. 39); “Queremos a revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.” (p. 40); “Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.” (p. 40); e “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem.” (p. 46).


Entre esses dois manifestos está o primeiro livro de poesia de Oswald de Andrade, “Pau Brasil”, de 1925 (2). O livro é celebrado como uma “tentativa de renovar os modos de expressão e fontes inspiradoras do sentimento poético brasileiro, há mais de um século soterrado sob o peso livresco das ideias de importação” (p. 15), nas palavras de Paulo Prado, que escreveu o prefácio “Poesia Pau Brasil” para a primeira edição da obra. Prado analisa que a “poesia ‘Pau Brasil’ é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro” (p. 17) e que “a mais bela inspiração e a mais fecunda encontra a poesia ‘Pau Brasil’ na afirmação desse nacionalismo que deve romper os laços que nos amarram desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada” (p. 17).

Buscando recontar a fundação do Brasil, como que, até mesmo, refundando o País, Oswald se vale de poemas de cortes rápidos, poemas-pílula, poemas-paródias e do uso do verso livre. Ele aborda da chegada das caravelas ao desenvolvimento industrial da cidade de São Paulo, passando pela colonização, os latifúndios, a escravidão, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Carnaval — e se valendo de referências que vão de Gonçalves Dias à Chevrolet. Antes do "Manifesto Antropófago”, Oswald já prenunciava o que ali defenderia, indicando o seu devorar crítico e sua atitude antropofágica. Em “Uma Poética da Radicalidade”, texto de 1966, Haroldo de Campos analisa que a “poesia ‘Pau Brasil’ de Oswald de Andrade representou, como é fácil de imaginar, uma guinada de 180 graus nesse status quo, onde — a expressão é do próprio Oswald — ‘os valores estáveis da mais atrasada literatura do mundo impediam qualquer renovação’ (CAMPOS, 2017, p. 240-241). Ele também afirma que “Pau Brasil”


“Repôs tudo em questão em matéria de poesia e, sendo radical na linguagem, foi encontrar, na ponta de sua perfuratriz dos estratos sedimentados da convenção, a inquietação do homem brasileiro novo, que se forjava falando uma língua sacudida pela ‘contribuição milionária de todos os erros’ num país que iniciava — precisamente em São Paulo — um processo de industrialização que lhe acarretaria fundas repercussões estruturais”. (2017, p. 241)


Diante do que Oswald professa no “Manifesto Antropófago” e em seus poemas de “Pau Brasil”, convém analisar como sua abordagem da “linguagem nacional” e do “tema nacional”, dentro da busca do modernismo brasileiro por uma literatura francamente nacional e de vanguarda, encontra limites em fronteiras temáticas e linguísticas e como as questões que coloca não estão finalizadas, porém permanecem abertas e clamam por novos olhares a cada década, principalmente em 2022, quando a Semana de Arte Moderna alcança o seu centenário. Um primeiro olhar, extremamente positivo, sobre “Pau Brasil” e sobre o desenvolvimento do modernismo brasileiro é do crítico Sérgio Buarque de Holanda, que escreveu “O lado oposto e outros lados” em 1926 (3). Buarque de Holanda celebra o movimento modernista, pois “nos permitiu a intuição de que carecemos, sob pena de morte, de procurar uma arte de expressão nacional”. Ele diz:


“Não me lembro mais como é a frase que li num ensaio do francês Jean Richard Bloch e em que ele lamentava não ter nascido num país novo, sem tradições, onde todas as experiências tivessem uma razão de ser e onde uma expressão artística livre de compromissos não fosse uma ousadia inqualificável. Aqui há muita gente que parece lamentar não sermos precisamente um país velho e cheio de heranças onde se pudesse criar uma arte sujeita a regras e a ideias prefixadas”.


Ou seja, aos olhos de Buarque de Holanda, é de se celebrar a chance de poder ser livre para criar uma arte nacional nova e liberta das pesadas tradições. Ele cita “Pau Brasil” como um dos melhores exemplos do movimento modernista que acompanha de perto:


“Nesse ponto prefiro homens como Oswald de Andrade, que é um dos sujeitos mais extraordinários do modernismo brasileiro; (...). Esses e alguns outros. Manuel Bandeira, por exemplo, que seria para mim o melhor poeta brasileiro se não existisse Mário de Andrade. E Ribeiro Couto que com “Um homem na multidão” acaba de publicar um dos três mais belos livros do modernismo brasileiro. Os outros dois são Losango cáqui e Pau-Brasil”.


É preciso levantar outras questões, contudo, como mostrou outro crítico, contemporâneo, Silviano Santiago. Para além dos méritos vanguardistas de Oswald, como bem enxergou Buarque de Holanda, é possível analisar, como fez Santiago, a questão do eu e do outro e suas fronteiras a partir de sua análise contemporânea nos anos 1970, 1980 e 1990. Para este trabalho, podemos nos deter, como exemplo e análise, nos poemas iniciais de “Pau Brasil”, que fazem referências aos povos ameríndios no contato com os portugueses.


Dado que o livro “reconta” o Brasil, em uma espécie de cronologia, a questão dos povos tradicionais aparece somente nos primeiros poemas do livro. A quadra de poemas “Pero Vaz Caminha”, da primeira seção da obra, “História do Brasil”, traz uma visão humorística e irônica ao recriar, em um português do século 16, a visão portuguesa do “paraíso” que haviam acabado de descobrir. Em “a descoberta”, escreve: “Seguimos nosso caminho por este mar de longo / Até a oitava da Paschoa / Topamos aves / E houvemos vista de terra”. Depois, a visão do “selvagem” como “inocente”, que não conhece uma galinha e nem tem “vergonhas”, mas dança e são amistosos. Em “os selvagens”: “Mostraram-lhes uma gallinha / Quasi haviam medo della / E não queriam pôr a mão / E depois a tomaram como espantados”. Em “primeiro chá”: “Depois de dansarem / Diogo Dias / Fez o salto real”. Em “as meninas da gare” (onde as índias, nuas, são vistas, como denuncia o “gare”, como prostitutas em uma rua europeia): “Eram tres ou quatro moças bem moças e bem gentis / Com cabellos mui pretos pelas espadoas / E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas / Que de nós as muito bem olharmos / Não tínhamos nenhuma vergonha”.


Mais adiante, na série “Gandavo”, as cartas portuguesas descrevem as belezas naturais da terra idealizada. Em “paiz do ouro”: “Todos tem remedio de vida / E nenhum pobre anda pelas portas / A mendigar como nestes Reinos”. Em “natureza morta”: “A esta fruita chamam Ananazes / Depois que sam maduras tem um cheiro muy suave / E come-se aparados feitos em talhada / E assi fazem os moradores por elle mais / E os tem em mayor estima / Que outro nenhum pomo que aja na terra”. Em “riquezas naturaes”: “Muitos melões pepinos romans e figos / De muitas castas / Cidras limões e laranjas / Uma infinidade / Muitas cannas daçucre / Infinito algodam / Tambem ha muito páo brasil / Nestas capitanias”. Por fim, em “festa da raça”: “Hu certo animal se acha tambem nestas partes / A que chamam Preguiça / Tem hua guedelha grande no toutiço / E se move com passos tam varagosos / Que ainda que ande quinze dias aturado / Não vencerá distancia de hu tiro de pedra”.


Estes poemas curtos, precisos, episódicos, para Haroldo de Campos, “dão um exemplo extremamente vivo e eficaz dessa poesia elíptica de visada crítica, cuja sintaxe nasce não do ordenamento lógico do discurso, mas da montagem de peças que parecem soltas (...)” (2017, p. 251). Ele enxerga nesses poemas que abrem “Pau Brasil” “verdadeiros desvendamentos da espontaneidade inventiva da linguagem dos primeiros cronistas e relatores das terras e gentes do Brasil (...)” (2017, p. 258). Nessa poesia “contida, reduzida ao essencial do processo de signos” (p. 245), ele observa a vertente destrutiva, dessacralizante, da poesia oswaldiana. Nela, ocorrem as paródias e a deglutição de discursos tradicionais, como as cartas de Pero Vaz de Caminha nos poemas acima transcritos ou como na famosa paródia que o autor faz da “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias (p. 257). Uma outra vertente, que dissolve os liames entre construção e destruição é aquela que “rearticula os materiais preliminarmente desierarquizados” (p. 257). Haroldo de Campos cita como exemplo os poemas construídos sobre a linguagem natural, com erros criativos, como o famoso poema “prononimais”.


Em “A permanência do discurso da tradição no modernismo”, texto de 1985, Silviano Santiago reitera que


“um dos discursos mais privilegiados do modernismo, sobretudo nos últimos vinte anos, tem sido o da paródia. Não é à toa que, entre os primeiros modernistas famosos, Oswald de Andrade é quem tem conseguido maior adesão por parte das gerações mais novas. Oswald é o que, no modernismo, levou até às últimas consequências a estética da paródia”. (2019, p. 550)


O crítico também reforça que, para Oswald, a utopia era “caraíba”:


“O saber selvagem, diz Oswald, vem questionando o saber europeu desde o primeiro contato da Europa com a América. De Montaigne a Rousseau, ou seja, passando da crítica às guerras religiosas e à Inquisição e chegando ao bom selvagem de Rousseau, sem esquecer a Declaração dos Direitos do Homem, o selvagem tem sido o motor da utopia europeia. Oswald, com o pensamento e a ação antropófagos, visa a trazer a utopia caraíba europeia para o seu lugar próprio - o Brasil”. (2019, p. 567)


Mas o indígena só aparece nos poemas de “Pau Brasil”, por exemplo, a partir da visão portuguesa, sem voz própria ou protagonismo. Há, portanto, na visão oswaldiana, um ponto cego ao não abordar o ângulo do olhar direto dos povos indígenas em sua “Poesia Pau Brasil” e em seu “Manifesto Antropófago”. Apesar de não trazer com sua ideia antropofágica uma visão exótica, idealizada e ufanista dos povos indígenas, como fazia o movimento da “Anta” (CAMPOS, 2017, p. 277-278), tampouco recria uma voz direta desses povos ou reconhece explicitamente sua contribuição cultural, não reconhecendo haver um ponto de contato, de limites fundíveis, entre índio de 1500 e homem paulistano do século 20 (sendo que ele mesmo escrevera, em seu manifesto, que “O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido”). O mesmo problema ocorre na literatura vanguardista do modernismo brasileiro da época da Semana de 22. Diz Silviano Santiago em “Oswald de Andrade, ou Elogio da tolerância racial”, texto de 1992:


“Se esse é o lado de 22 que os nossos melhores historiadores e críticos sempre ‘iluminam’ (com e sem trocadilho), existe outro lado que cada vez mais sofre desprestígio daqueles senhores. Trata-se da forma como Oswald de Andrade e outros recuperam o que injustamente tem sido classificado de passado colonial brasileiro numa visão reducionista do que é na verdade a possível contribuição cultural das raças indígenas no diálogo com a modernidade ocidental. Esse reducionismo acaba por valorizar uma razão moderna etnocêntrica, intolerante, incapaz de manter diálogo com o seu outro (as culturas ameríndias e africanas) (...). Esse reducionismo, em geral, rechaça o saber antropológico, pois desqualifica como equívoco ufanista qualquer contribuição que possa advir daquele conhecimento, negando a ele a condição de parceiro num frutífero diálogo seu com a história”. (2019, p. 613)


Há ponderações, claro. Quando Oswald desenha o índio a partir do olhar do colono português, como nos poemas acima citados, o faz com ironia e olhar crítico. Como pondera Haroldo de Campos:


“(...) lembrando uma frase do ‘Manifesto Antropófago’: ‘Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de d. Antônio de Mariz’, para mostrar que seu ‘índio’ nada tinha a ver com ‘os índios conformados e bonzinhos de cartão-postal e de lata de bolacha’. O ‘índio’ oswaldiano não era o ‘bom selvagem’ de Rousseau, acalentado pelo romantismo e, entre nós, ‘ninado pela suave contrafação de Alencar e Gonçalves Dias’. Tratava-se de um indianismo às avessas, inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne (‘Sobre os canibais’), de um ‘mau selvagem’, portanto, a exercer sua crítica (devoração) desabusada contra as imposturas do civilizado”. (CAMPOS, 2017, p. 277)


A visão de Oswald é otimista e celebratória, mas não ufanista. Ele diz no “Manifesto Antropófago”: “A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignatários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais” (p. 43). Mas Alfredo Bosi também enxerga os limites do “primitivismo” vanguardista de Oswald, dizendo que ele, apesar de ter se arriscado a sair mais de uma vez de suas constrições, “não teria tido condições psicológicas para superar o decadentismo da sua formação belle époque” (2017, p. 382). Também, Bosi analisa:


“O plano que norteou Pau-Brasil foi o de transpor, nesse estilo de síntese violenta, não só o espaço moderno da nação, como o faz nas partes intituladas ‘RPI’, ‘Carnaval’, ‘Postes da Light’, ‘Loide Brasileiro’, mas também a sua vida pré-colonial e colonial. Daí, a junção de modernismo e primitivismo que, em última análise, define a visão do mundo e a poética de Oswald. Pena é que, na esteira do ‘primitivismo’, o escritor haja reiterado tantos estereótipos do caráter nacional (os mesmos de Paulo Prado no Retrato do Brasil): a ‘luxúria’, a ‘avidez’ e a ‘preguiça’ com que nos viram os colonizadores do século XVI e as teorias colonialistas do século XIX (...)”. (2017, p. 385)


Silviano Santiago, novamente em “Oswald de Andrade, ou Elogio da tolerância racial”, enxerga, para além da sua crítica da visão reducionista de Oswald de Andrade, uma zona fronteiriça, de matizes cinzentas para além dos julgamentos duros que poderiam, na contemporaneidade, “cancelar” o autor modernista. Santiago reconhece, primeiro, a complexidade da tarefa e da posição de Oswald quando escreveu textos como “Pau Brasil” e “Manifesto Antropófago”, pois ele “(...) tanto faz parte de uma cultura nacional, onde praticamente inexistem valores tradicionais passíveis de serem acatados, quanto quer inscrever o seu projeto poético dentro do espírito das vanguardas europeias” (2019, p. 610). Depois, ilumina certa fragilidade da posição de Oswald enquanto escrevia tais textos, o que hoje poderíamos chamar de “lugar de fala”. Diz de Oswald: “Esse tópos — o de que você precisa deixar a pátria para depois, tendo se aprimorado intelectualmente em países desenvolvidos, redescobri-la nas suas contradições e misérias — se tornará mais tarde um tópos comum na ‘educação sentimental’ da maioria dos nossos pensadores” (2019, p. 610). O crítico, assim, levanta dois exemplos de como o Oswald que deseja refundar a história do Brasil com uma poesia totalmente nacional e de vanguarda não consegue, apesar dos esforços radicais e modernistas, escapar totalmente da sombra do colonizador europeu.


O próprio Oswald de Andrade enxerga como as fronteiras entre interior e exterior precisam se dissolver, em alguma medida, para delimitar a tal “cultura brasileira”. Em “Bilhete Aberto”, texto escrito ao poeta Cassiano Ricardo na década de 1940, Oswald fala contra o que ele chama de “macumba para turistas”:


“Conclui-se que a cultura brasileira não reside na exteriorização (dramática ou poética) dos valores autóctones da nossa nacionalidade. Essa exteriorização do nosso interior (o nativismo) nada mais é do que a farsa ridícula do paraíso tropical, montada para conseguir simpatia e dinheiro dos maus viajantes europeus (os turistas). Para o Brasil poder se exteriorizar com dignidade, é preciso que acate antes o exterior em toda a sua concretude”. (citado por SANTIAGO, 2019, p. 611-612)


Apesar de falhar, parece, em incluir a contribuição indígena para essa formação cultural, Oswald de Andrade não deixou de defender uma nova visão histórica para esses mesmos indígenas, uma visão que rejeitasse a descrição da história oficial europeia; que, portanto, reconhecia como violenta e injusta. Diz Santiago:


“Quando uma coleção de poemas publicada em 1925 diz descobrir o Brasil, em aparente a-historicismo, ela está dando a ler a tentativa de outra concepção de processo e evolução históricos, diferente da concepção então vigente entre historiadores e sobretudo muito diferente da que foi dominante entre nossos historiadores oficiais (...)”. (2019, p. 612)


Outro limite, por fim, não menos decisivo, é a questão da linguagem, que transita na fronteira entre o tradicional e o vanguardista, entre a prisão e a transgressão. Ao usar o português para escrever uma nova poesia que almejava ser moderna e genuinamente brasileira, Oswald trabalha no limite da deglutição antropofágica: usar a língua do colonizador para expressar a literatura nacional do antes colono. Essa fronteira difusa entre a língua da tradição e uma sonhada língua da vanguarda permanece uma questão em aberto. Analisa Otto Maria Carpeaux (2012, p. 150-151):


“No Modernismo brasileiro apenas se esboçou o mais difícil de todos os problemas da época: o da língua. A grande cidade e a técnica requerem nova língua. As nações criadas pela imigração e colonização requerem novas línguas. A extensão do nosso conhecimento da alma humana pela psicologia de profundidade requer nova língua. Muitas coisas inéditas e muitas coisas propriamente inefáveis têm de ser ditas. Nem na Europa, nem na América Latina foi esse problema inicialmente atacado com o radicalismo necessário”.


Mas esse “problema” pode ser visto como um lugar próprio que o escritor brasileiro, que um escritor como Oswald de Andrade, pode reconhecer como seu e, portanto, percorrer. Se Carpeaux analisou esse problema enfrentado pelo modernismo brasileiro como “falta de radicalismo” nos anos 1940 (“História da Literatura Ocidental” foi escrito nos anos 1940 e publicado pela primeira vez em 1959), Silviano Santiago, escrevendo em 1971, pode enxergar a questão do “entre-lugar”. Em “O entre-lugar do discurso latino-americano”, Santiago fala da conquista portuguesa e mostra como, junto da conversão religiosa pelos jesuítas, veio a imposição de uma língua, pois “Evitar o bilinguismo significa evitar o pluralismo religioso e significa também impor o poder colonialista. Na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta” (2019, p. 26).


Mas da América Latina vêm as margens borradas desses limites entre eu e outro, minando o que seria visto como unidade e pureza. Santiago escreve:


“A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. (...) Em virtude do fato de que a América Latina não pode mais fechar suas portas à invasão estrangeira, não pode tampouco reencontrar sua condição de “paraíso”, de isolamento e de inocência, constata-se com cinismo que, sem essa contribuição, seu produto seria mera cópia (...)”. (2019, p. 28)


Assim, ele explica, o escritor latino-americano pode viver “entre a assimilação do modelo original, isto é, entre o amor e o respeito pelo já-escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue” (p. 36). Portanto, há um entre-lugar de vislumbre antropófago quando um escritor como Oswald, na sua poética da radicalidade, se vale dos instrumentos daqueles que jamais gostariam de ver a “Revolução Caraíba”. Finaliza Santiago:


“Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.” (2019, p. 39)


NOTAS


  1. Todas as menções ao “Manifesto Antropófago” são de: ANDRADE, O. Manifesto Antropófago e Outros Textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

  2. A edição de “Pau Brasil” citada neste breve ensaio é de: ANDRADE, O. Poesias Reunidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

  3. HOLANDA, S. B. “O lado oposto e outros lados”. In: _______. O espírito e a letra: estudos de crítica literária I - 1920-1947. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 224-228.


REFERÊNCIAS


ANDRADE, O. Manifesto Antropófago e Outros Textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Ebook.


ANDRADE, O. Poesias Reunidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.


BOSI, A. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2017.


CAMPOS, H. “Uma Poética da Radicalidade”. In: ANDRADE, O. Poesias Reunidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 239-296.


CARPEAUX, O. M. O Modernismo por Carpeaux (História da Literatura Ocidental; v. 9). São Paulo: Leya, 2012.


HOLANDA, S. B. “O lado oposto e outros lados”. In: ________. O espírito e a letra: estudos de crítica literária I - 1920-1947. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 224-228.


SANTIAGO, S. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. “A permanência do discurso da tradição no modernismo”. “Oswald de Andrade, ou Elogio da tolerância racial”. In: _________. 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Ebook.


SCHWARTZ, R., ANDRADE, G. “Sobre esta edição”. In: ANDRADE, O. Manifesto Antropófago e Outros Textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Ebook.

 

Citação: DEARO, Guilherme. "Antropofagia e Pau-Brasil: as fronteiras do eu em Oswald de Andrade". São Paulo: FFLCH/USP, dezembro de 2021.



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