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  • Guilherme Dearo

Bosi, Santiago: oposições diante de José de Alencar

Atualizado: 28 de jun.

Reflexões sobre O Guarani, de José de Alencar, a partir das visões de “Liderança e hierarquia em Alencar”, de Silviano Santiago, e “Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar”, de Alfredo Bosi



Em diferentes tempos e contextos, críticos e acadêmicos tendem a fazer leituras díspares de textos centrais da literatura brasileira, ora mais elogiosas ou neutras, ora mais críticas. É o caso das visões sobre O Guarani (1857), de José de Alencar (1829-1877). Estas muitas vezes se cruzam, se citam e se criticam. Em “Liderança e hierarquia em Alencar” [1], Silviano Santiago (1936) critica nominalmente (1982, pp. 110-111) a leitura do romance que faz Augusto Meyer (1902-1970), assim como o endosso deste por João Alexandre Barbosa (1937-2006). Já em “Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar” [2], texto posterior ao de Santiago, Alfredo Bosi (1936-2021) critica aquele, sem citá-lo, ao chamar de “lugar-comum” a visão “dos comparatistas literários que afinam o indianismo brasileiro pelo diapasão europeu da romantização das origens nacionais” (2016, p. 176).


Discussões sobre O Guarani e sua posição no Romantismo brasileiro costumam enfocar questões de como o texto se posiciona como histórico, buscando um legítimo "épico" nacional; como idealiza a figura do indígena, colocando-o como herói; como pretende criar uma pretensa “fundação do brasileiro” no encontro das raças; e como busca criar o mito do passado heroico nacional aos moldes dos mitos medievais europeus. José de Alencar enxergava o seu romance como pertencente a uma “segunda fase”, conforme sua autoanálise explicitada na apresentação do livro Sonhos D’Ouro. Alencar escreve (BOSI, 2017, p. 143) que Iracema pertence a um primeiro movimento, “que se pode chamar aborígene”, sobre lendas e mitos da terra selvagem, de literatura “cheia de santidade”, enquanto O Guarani pertence a um segundo movimento, histórico, que representa o “consórcio do povo invasor com a terra americana”. Diz que este é “a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições do seu progenitor”. Bosi analisa que “Embora as linhas acima tivessem o objetivo básico de justificar os brasileirismos de alguns romances e os estrangeirismos de outros, eles indicam o quanto importava a Alencar cobrir com a sua obra narrativa passado e presente, cidade e campo, litoral e sertão, e compor uma espécie de suma romanesca do Brasil.” (ibid., p. 144).


Antes de abordar o ensaio de Silviano Santiago, vale citar aqueles que ele critica. João Alexandre Barbosa, por exemplo, escreveu a apresentação da edição de O Guarani para a Editora Ática (1992). O texto, “Leitura de José de Alencar” é extremamente elogioso e se estrutura em tom de exaltação. Ora, não poderia ser muito diferente, dado que o texto tem cunho mercadológico na lógica da casa editorial: está ali, na abertura do livro, para exaltar a obra de Alencar que foi republicada e, portanto, necessita ser vendida e lida. Não poderia estar em seu lugar um texto elencando somente problemas no romance do autor. De qualquer maneira, também são justos os elogios e menções às qualidades da obra.


Barbosa, primeiro, elogia o elogio de Meyer a Alencar: “Penso que foi Augusto Meyer quem, escrevendo sobre o presente livro (...), pôs melhor o dedo no suspiro: viu José de Alencar como escritor, escolhendo os seus temas, esforçando-se por achar aquilo que é o objetivo de todo escritor de raça, isto é, a sua linguagem com a qual pudesse dar conta do tema que escolhesse” (1992, p. 4). Depois, tenta justificar algumas das críticas ao romance de Alencar: “Tropeçando nos erros de sua ignorância etnográfica, esbarrando por entre as armadilhas da selva selvaggia de uma terminologia ‘brasileira’ ainda não bastante esclarecida em sua época (e tudo isso os seus críticos menos argutos e mais caturros, de ontem e hoje, fizeram e fazem valer como condenação geral de sua obra), Alencar foi afirmando a supremacia de uma realidade ficcional sobre a chateza das minudências de ordem histórica ou geográfica (...).” (ibid., p. 5).


Além disso, Barbosa reforça questões que parecem consenso em análises introdutórias do romance voltadas ao grande público, como a questão de que, ao Peri e Cecília possivelmente sobreviverem a um dilúvio no final do épico, tal fato estaria representando “a reunião de raças procriadoras da nacionalidade, como pedia a etnologia romântica perfilhada por Alencar” (ibid., p. 7), enquanto ainda existiria uma camada mítica, em específico a lenda de Tamandaré citada por Peri: “A lenda de Tamandaré - o Noé indígena, como anota Alencar - (...) pode ser lida como uma espécie de referência intertextual: a fecundação posterior da terra pelo indígena da lenda (...).” (ibid., p. 7). A mesma visão aparece, por exemplo, em Eduardo Vieira Martins, em outro texto do tipo introdutório, dessa vez para a casa Ateliê Editorial. Martins reforça a questão da gênese nacional: “(...) a história de Peri e Ceci deve ser lida como um mito de fundação do Brasil. A gênese do novo povo surge aí como fruto do encontro entre portugueses e indígenas em meio à floresta misteriosa.” (2014, p. 30).


Em “Liderança e hierarquia em Alencar”, Silviano Santiago busca discutir como a questão da hierarquia aparece em Alencar e em O Guarani. Como dito anteriormente, Santiago critica frontalmente visões de críticos como Meyer e Barbosa, e também contesta a crítica comparatista que recai sobre os textos de Alencar, que só olham para eles falando de como bebiam de fontes externas e como se alinhavam dentro da estética romântica construída na Europa (1982, p. 99).


Santiago parte do princípio do que viria a ser a intenção de Alencar dentro do Romantismo brasileiro: forjar uma identidade nacional. Ao rejeitar Portugal, diz Santiago, se rejeitava identidade, liderança e hierarquia. Mas, afastando tais elementos do colonizador, nada aqui sobrava, pois faltava tradição sócio-cultural brasileira que apresentasse, justamente, identidade, liderança e hierarquia (ibid., p. 89). Nesse vácuo, “a palavra escrita, o texto (tanto o descritivo quanto o ficcional), servirá como mecanismo de definição e estabelecimento dos valores sociais, políticos e econômicos da nova terra e da sua gente.” (ibid., pp. 89-90). Para ele, os brasileiros e seus escritores careciam de responder algumas questões essenciais: “Que país é este? Quem sou eu? Em virtude da minha função social, que lugar ocupo?” (p. 90). E completa: “Os primeiros textos que foram escritos para configurar terra e homem levam a assinatura de portugueses e respondem a algumas dessas perguntas em termos de violentas afirmações etnocêntricas, ou, mais especificamente, europeocêntricas.” (ibid., p. 90). Os índios, para estes textos, eram “tábulas rasas” que careciam da cultura e da escrita portuguesas


Após essa introdução, Santiago levanta pela primeira vez a questão da hierarquia, foco de seu ensaio. Desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, há relatos da preocupação de mostrar aos indígenas que havia um chefe português - no caso, Cabral. Já a preocupação do português em encontrar entre os indígenas um líder também aparece em diversos textos do período colonial, ele diz (p. 92). A esta hierarquia coercitiva, se interpõe outra ideia, para além do modelo europeu. Santiago lembra o antropólogo e etnólogo francês Pierre Clastres, que fala em sociedades com organizações que não dependem da coerção e do uso da força, uma ideia combativa à antropologia tradicional, portanto; e que até mesmo no Tratado Descritivo do Brasil (de Gabriel Soares de Sousa, 1587), há relato de que os tupinambás só apresentam algo como obediência a um líder em tempos de guerra. Passada a crise, essa força desaparece (p. 92). Ora, diz Santiago, se não é possível encontrar a lógica de hierarquia coercitiva europeia nos povos tradicionais brasileiros, os portugueses a trarão para sua própria organização na colônia tropical, buscando paralelos europeus: “O processo de definição do ser político-social brasileiro (o que é o ser senhor de engenho? por exemplo) é dado pela comparação dele com o correspondente na estrutura europeia, gerando como consequência um deslocamento geográfico e temporal bastante significativo. As duas forças econômicas mais fortes no Brasil, o senhor de engenho e o colono, são dadas como semelhantes à do fidalgo e à do cidadão europeu.”, ele analisa (pp. 94-95).


Com essa base, Santiago passa a discutir Alencar e O Guarani. O autor estabelece Alencar como alguém que se atraiu pelo passado de sua pátria: “Quis decifrá-lo, dar-lhe forma, e, de vago, reduzi-lo a concreto.” (p. 98). Afirma, também, que Alencar dava forma ao passado “segundo os valores que estavam sendo determinantes de uma posição ideologicamente correta dentro do pensamento conservador e independentista do século XIX.” (p. 99). Chega-se, então, à principal tese sobre hierarquia no texto alencarino na visão de Santiago: de que, em O Guarani, Alencar mostra espaço para o poder indígena que não nos moldes hierárquicos europeus (p. 104) e que a liderança que surge no romance (como a de D. Antônio de Mariz e Cecília em relação a Peri) é fruto menos da violência e mais de estratos hierárquicos rígidos previamente definidos (p. 104).


Para Santiago, Alencar debate a liberdade e independência, com ambiguidades, ao colocar a figura D. Antônio de Mariz criando a sua sesmaria no sertão brasileiro - ele mora em um “castelo” - e representando, ali, o poder português contra a dominação espanhola de Portugal na Europa (p. 101). Para ele, “D. Antônio de Mariz, apesar de não estar na frente de uma sociedade europeia organizada, a tem em linguagem e comparação nos trópicos.” (p. 102). Também, Santiago analisa que “Alencar estabelece uma diferença social básica entre a organização política dos selvagens e a dos portugueses, criando portanto estruturas nobres e paralelas” (p. 102). Santiago enxerga certa visão positiva em Alencar para com os indígenas, figuras de suas idealizações românticas. Ele lembra que Alencar defendia os povos indígenas das visões que os colocavam como bárbaros, canibais ou “tábulas rasas”, dizendo que Alencar os recupera positivamente em linguagem e em comparação (p. 103).


Apesar de Santiago lembrar que Alencar separa no romance os indígenas recuperáveis daqueles que são inimigos (os goitacás, como Peri, são amigos, enquanto os aimorés têm aspecto bestial e são inimigos), ele diz que: no texto alencarino “o gesto autoritário só se dá como forte e violento em circunstâncias excepcionais.” (p. 104); e que “O chefe alencarino - pelo menos nos seus romances históricos e lendas - guarda muito da transparência do ‘principal’ indígena (...). O poder não é necessariamente coercitivo, e ele assim o pode ser e ele assim se mantém porque a hierarquia é muito e continuamente marcada no texto. (...) a liderança é mais produto de uma hierarquização rígida do que consequência de ordens violentas e repressivas.” (p. 104).


Também central em seu texto, Santiago falará em Alencar de uma hierarquização existente para os brancos, “com o fim de dar uma organização social ao grupo, de buscar um governo que não seja coercitivo, violento ou arbitrário.” (p. 104). Não haveria isso entre os indígenas, portanto. Ele vai dizer que a liderança surge sem violência, pois a hierarquia dá conta de definir todos os estratos: “E como a hierarquia é sólida e inquestionável, pois advém de valores categóricos, recobertos pelo campo semântico feudal, não há necessidade de que haja poder coercitivo por parte do chefe contra as camadas que lhe são inferiores. Cada um sabe o lugar que ocupa e que é o certo, visto que as possibilidades de transferência, de mobilidade, de ascensão, estão banidas do universo textual de Alencar. O imobilismo social congela todos os elementos da comunidade dos brancos, sejam eles humanos ou naturais. E o texto literário serve exatamente como efeito de coágulo.” (p. 105).


Como último ponto crucial de seu ensaio, Santiago analisa que “Dentro de uma organização sócio-econômica hierarquizada, rígida, é o selvagem o único indivíduo que tem o poder de mobilidade. Se for inimigo, é enfrentado na guerra. Caso seja tomado apenas como cativo, é vassalo (...). Quando são ‘nobres’ em seu próprio meio, podem se inscrever num escalão mais alto dentro da hierarquia europeizada, mas neste caso não existe ascensão, apenas absorção digna.” (p. 106). Na visão dele, Alencar coloca o selvagem que é visto como nobre (com traços europeus, como diz o famoso trecho de Peri visto por Mariz como “um cavalheiro português no corpo de um selvagem” - capítulo 7 da primeira parte) dentro de uma hierarquia social rígida e que, para este selvagem “nobre”, Alencar enxerga um lugar dentro da chefia do castelo feudal - como ocorre com Peri no “castelo” de D. Antônio de Mariz (p. 106); e Santiago reforça que é equivocada a leitura de que Peri era, no início de O Guarani, um escravo, e depois ascende socialmente. Para ele, Peri desde o começo está dentro de um processo hierárquico (p. 106).


Nos argumentos finais de seu ensaio, Santiago critica Augusto Meyer, já que este não via Alencar bem-sucedido na tentativa de ser um “intérprete” do Brasil. Meyer, diz Santiago, estava favorecendo os modernistas, estes sim, para ele, os primeiros a conseguir entender o Brasil (p. 109). Santiago contesta Meyer, dizendo que “Tentamos mostrar como, apesar da violência do etnocentrismo, apesar de ser a língua companheira do Império, apesar de o chefe ‘nativo’ pouco usar o poder coercitivo (sendo, portanto, pouco visível), o texto colonial no Brasil é o farol que ilumina e codifica os novos valores que vão surgindo de maneira anárquica (...).” (p. 109). Para Santiago, é preciso esclarecer que “diante da matéria anárquica que é o Brasil e os brasileiros, diante da matéria amorfa, Alencar ‘adivinhou’ o passado brasileiro através de uma forma literária, onde deixou explícito o discurso do chefe, empresário no Novo Mundo. E é por isso que o seu romance é histórico, o seu indígena é selvagem, e o conflito não é mero imprevisto, tomado de empréstimo a romances de cavalaria (...). O texto alencarino veicula o desejo de manter um discurso de liderança civil, camuflada por valores feudais.” (p. 112). Completa ele: “A consciência nacional só pode surgir de formas de compromisso, de um entrelugar que passa a ser definidor não mais do puro exotismo europeu, nem da pura exuberância brasileira, mas da contaminação do exotismo sobre a exuberância e vive-versa.” (p. 110).


No tocante ao que diz Santiago sobre hierarquia, poder, violência e mobilidade social, são esses os pontos que Bosi, em “Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar”, critica na leitura daquele. Para Bosi, tudo em O Guarani e em Alencar aponta para a sujeição do indígena ao poder europeu. Bosi não concorda que não haja coerção e violência nas questões de liderança entre europeus e entre europeus e indígenas, ou que Alencar recupere positivamente a figura do indígena, como alguém que tem o poder da mobilidade fora da rigidez hierárquica de traços medievais da sesmaria em terras brasileiras. Em seu ensaio, Bosi vai afirmar que “No caso brasileiro, um dos veios centrais do nosso romantismo, o alencarismo, também mostrou-se receoso de qualquer tipo de mudança social, parecendo esgotar os seus sentimentos de rebeldia ao jugo colonial nas comoções políticas da independência.” (2016, p. 176). Em “História concisa da literatura brasileira”, Bosi reafirma o caráter conservador da visão dita liberal e independentista de Alencar: “O nosso indianismo, de Varnhagen a Alencar, pendeu para o extremo conservador, como todo o contexto social e político do Brasil dos fins da Regência à década de 60. (...) E o que poderia ter sido um alargamento da oratória nativista dos anos da Independência (Fr. Caneca, Natividade Saldanha, Evaristo) compôs-se com traços passadistas a ponto (...) de o nosso primeiro romancista de pulso - que tinha fama de antiportuguês - inclinar-se reverente à sobranceria do colonizador. A América já livre, e repisando o tema da liberdade, continuava a pensar como uma invenção da Europa.” (2017, p. 106).


Em “Mito sacrificial”, Bosi afirma que: o índio não ocupa o lugar do rebelde, como era de se esperar no imaginário pós-colonial (p. 177); que “O índio de Alencar entra em íntima comunhão com o colonizador. Peri é, literal e voluntariamente, escravo de Ceci, a quem venera como sua Iara, ‘senhora’, e vassalo fidelíssimo de dom Antônio.” (p. 177); e que é possível identificar um complexo sacrificial nas obras indianistas de Alencar, pois “Nas histórias de Peri e de Iracema a entrega do índio ao branco é incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando sacrifício e abandono da sua pertença tribo de origem. Uma partida sem retorno.” (pp. 178-179). Bosi vaticina que “Há um nó apertado de pensamento conservador, mito indianista e metáfora romântica na rede narrativa de O Guarani.” (p. 180) e que os valores superiores atribuídos ao “bom selvagem” brasileiro nunca estão dissociados do europeu: “A concepção que Alencar tem do processo colonizador impede que os valores atribuídos romanticamente ao nosso índio - o heroísmo, a beleza, a naturalidade - brilhem em si e para si; eles se constelam em torno de um ímã, o conquistador, dotado de um poder infuso de atraí-los e incorporá-los. Não sei de outra formação nacional egressa do antigo sistema colonial onde o nativismo tenha perdido (para o bem e para o mal) tanto da sua identidade e da sua consistência.” (p. 181). Bosi afirma: “Assim, o mito alencariano reúne, sob a imagem comum do herói, o colonizador, tido como generoso feudatário, e o colonizado, visto, ao mesmo tempo, como súdito fiel e bom selvagem.” (p. 180), fato que mostra como o indianismo de Alencar “não constitui um universo próprio, paralelo às fantasias medievistas europeias, mas funde-se com estas.” (p. 180).


Bosi reafirma que o poder europeu sob o indígena era sim, fruto de coerção, não fruto de hierarquia construída aos moldes europeus e medievos trazidos por aqueles que pelas terras virgens se aventuram: “É minha hipótese que o mito sacrificial, latente na visão alencariana dos vencidos, se tenha casado com o seu esquema feudalizante de interpretação da nossa história. Dentro de um contexto marcado pelas relações de senhor e servo, no qual o domínio do primeiro e a dedicação do segundo parecem conaturais, assumem uma lógica própria as personagens de O Guarani e a doce escravidão que Machado de Assis viu em Iracema.” (pp. 186-187).


Bosi conclui seu texto apresentando certa fissura dissidente dentro de O Guarani, fato que a princípio poderia mostrar uma visão mais liberal de Alencar, mas que acaba por se mostrar igualmente conservadora. Ele lembra que “Em Dom Antônio, como em sua filha dileta, Cecília, a síntese colonial-romântica se perfaz de modo cabal, ambos admiram intensamente Peri, ambos respeitam os selvagens (...).” (p. 189). No romance, personagens portugueses, senhores de terra e detentores de nobreza, reconhecem “nos índios aquelas virtudes naturais de altivez e fidalguia que seriam comuns ao português e ao aborígene.” (p. 189), o que leva à inclusão do índio nessa esfera de nobreza: “A honra constitui, como se sabe, a pedra de toque das relações pessoais pré-burguesas. (...) O que marca o indianismo de Alencar é a inclusão do selvagem nessa esfera de nobreza, na qual cabem sentimento de devoção absoluta (de Peri a Ceci) e também de ódio sem margens (dos aimorés aos brancos do solar).” (p. 189). Contudo, a relação entre europeu e indígena não é entre iguais em Alencar, portanto é errôneo ler uma intersecção de igualdade entre estes dois pólos - sempre há hierarquia e coerção: “Tal sistema de expectativas de honra só não reproduz simplesmente o modelo de convivência entre fidalgos europeus, porque não é uma relação entre iguais: quem o instalou pretende subjugar o outro ao seu próprio mundo de dominação. Mas, como essa premissa fica, em geral, subentendida, o que aparece em primeiro plano é a intersecção de fidalgo e selvagem que se cruzam na posse das virtudes propriamente senhoriais: coragem e altivez, abnegação e lealdade.” (pp. 189-190).


Há no romance, enfim, uma brecha na hierarquia colonial brasileira que se diz europeia e medieval, o que põe em xeque o “castelo nos trópicos” de D. Antônio de Mariz. Há um novo elemento hierárquico para além da honra dos cavaleiros e das relações entre senhores e vassalos. Lembra Bosi: “Já no primeiro capítulo, o leitor é informado de que ‘o fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca, era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas, que serviam de morada a aventureiros e acostados’. (...) O pacto com mercenários faz entrar uma realidade nova: o ganho, o dinheiro; instituto alheio à rede feudal de valores. A brecha, se bem pensada, teria ensinado a Alencar que a Colônia não repetia a Idade Média, mas abraçava uma sociedade já aberta (...).” (p. 190). //


NOTAS


[1] As menções a este texto são de: SANTIAGO, S. “Liderança e hierarquia em Alencar”. In: Vale quanto pesa: Ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1982, pp. 89-116.


[2] As menções a este texto são de: BOSI, A. “Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar”. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 176-193.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALENCAR, J. O Guarani. São Paulo: Ática, 1992.


BARBOSA, J. A. “Leitura de José de Alencar”. In: ALENCAR, J. O Guarani. São Paulo: Ática, 1992, pp. 3-8.


BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2017.


BOSI, A. “Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar”. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 176-193.


MARTINS, E. V. “Apresentação”. In: ALENCAR, J. O Guarani. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014, pp. 11-40.


SANTIAGO, S. “Liderança e hierarquia em Alencar”. In: Vale quanto pesa: Ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1982, pp. 89-116.


 

Citação: DEARO, Guilherme. "Bosi, Santiago: oposições diante de José de Alencar". São Paulo: FFLCH/USP, junho de 2022.


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