Elena Ferrante e a busca pelas primeiras palavras
A misteriosa autora italiana narra sua busca pessoal pela literatura em "As Margens e o Ditado"
![Foto: Luigi Ghirri](https://static.wixstatic.com/media/5fb4ae_209f44170ec1457a8a69843b0224d43d~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_651,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/5fb4ae_209f44170ec1457a8a69843b0224d43d~mv2.jpg)
I. Durante boa parte da minha vida, escrevi páginas lentas com a única esperança de que fossem preliminares, de que logo chegaria o momento daquele impulso irrefreável, quando o eu que escreve a partir do seu fragmento de cérebro, com um movimento repentino, se apodera de todos os eus possíveis, de toda a cabeça, do corpo inteiro
II. A ideia de Woolf me parece clara: escrever é acampar dentro do próprio cérebro, sem mais se dispersar nas tão numerosas, variadas, subalternas modalidades com as quais, como Virginia, se vive uma vida bruta.
III. Quem escreve não tem nome. É pura sensibilidade que se nutre de alfabeto e produz alfabeto em um fluxo irrefreável.
IV. Contudo, hoje, destruir me parece um propósito vanguardista bastante ingênuo. Como todas as pessoas tímidas e fiéis, eu tinha a ambição inconfessa e inconfessável de sair das formas dadas e deixar a escrita extravasar qualquer forma. Depois, pouco a pouco, aquela fase passou: até Samuel Beckett, o extraordinário Samuel Beckett, dizia que a única coisa da qual não podemos prescindir, na literatura e em qualquer outro âmbito, é a forma.
V. Para mim, a escrita verdadeira é isto: não um gesto elegante, estudado, mas um ato convulso.
VI. Talvez o que me salve — mas a salvação não demora muito a se revelar perdição — seja que, sob a necessidade de ordem, perdurou uma energia que quer atrapalhar, desordenar, desiludir, errar, falir, sujar.
VII. Assim, o romance de amor começa a me satisfazer quando se transforma em romance de desamor. O romance policial começa a me prender quando sei que ninguém descobrirá quem é o assassino. O romance de formação me parece estar no caminho certo quando fica claro que ninguém vai se formar. A bela escrita se torna bela quando perde harmonia e tem a força desesperada do feio.
VIII. Percebi que a realidade, no fazer literário, tendia inevitavelmente a se reduzir a um rico repertório de truques que, se usados com habilidade, davam a impressão de que os fatos surgiam na página exatamente como haviam acontecido, com suas conotações sociológicas, políticas, psicológicas, éticas etc. Em suma, bem diferente da coisa como ela é. Tratava-se de um jogo de ilusão que, para ser bem-sucedido, devia fingir que ninguém havia narrado, ninguém havia escrito, e que o real estava ali, tão bem reproduzido a ponto de fazer esquecer até os sinais do alfabeto.
IX. Quase sem me dar conta, de aspirante a um realismo absoluto, eu me tornara uma realista desanimada que dizia a si mesma: só posso narrar o “lá fora” se também narrar a mim, que estou “lá fora” junto a todo o resto.
X. O fazer literário nunca conseguiria conter de fato o redemoinho de detritos que constituía o real dentro de uma ordem gramatical e sintática qualquer.
XI. Há mais de trinta anos, falei para mim mesma: tentar dizer a coisa como ela é pode se tornar paralisante, visto que a soma dos inúmeros fracassos e a casualidade dos raríssimos sucessos podem me deixar surda, muda, niilista; tentarei, portanto, dizê-la como posso e, quem sabe, talvez eu tenha sorte e consiga dizê-la como é. E segui em frente com tentativas e erros.
XII. Quem tem ambições literárias sabe muito bem que é da “vida viva” que vêm os grandes e pequenos motivos que impulsionam a mão a escrever: a ânsia de contar a pena de amor, a pena de viver, a angústia da morte; a necessidade de alinhar o mundo todo torto; a busca de um novo éthos que nos remodele; a urgência de dar voz aos últimos, de desnudar o poder e suas atrocidades; a necessidade de profetizar desventuras, mas também de arquitetar mundos felizes por vir.
XIII. Precisamos aceitar o fato de que nenhuma palavra é realmente nossa. Precisamos abrir mão da ideia de que escrever é libertar de forma milagrosa uma voz própria, uma tonalidade própria: para mim, esse é um jeito displicente de falar da escrita.
XIV. Pelo contrário, escrever é, a cada vez, entrar em um cemitério infinito no qual cada tumba espera para ser profanada.
XV. Escrever é acomodar-se em tudo o que já foi escrito — a grande literatura e a literatura de consumo, se for útil, o romance-ensaio e o melodrama — e, dentro do limite da própria vertiginosa e abarrotada individualidade, tornar-se, por sua vez, escrita. Escrever é apoderar-se de tudo o que já foi escrito e aprender aos poucos a gastar aquela enorme fortuna.
XVI. A escrita deve lidar inevitavelmente com outra escrita, e é do terreno do que já foi escrito que surge, por acaso, a frase que põe em movimento um livrinho agradável ou o grande livro que mostra a direção e constrói um universo único de palavras, figuras e conflitos.
Destaques de "As margens e o ditado: Sobre os prazeres de ler e escrever", de Elena Ferrante. Intrínseca, 2023. Trad. Marcello Lino.
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