Entre Tostes e Comala
Atualizado: 28 de jun.
A descrição subjetiva das províncias em Gustave Flaubert e Juan Rulfo
"Paris, mais vago do que o oceano, cintilava, pois, aos olhos de Emma numa atmosfera escarlate. A vida numerosa que se agitava naquele tumulto estava, entretanto, dividida por partes, classificada em quadros distintos. Emma só percebia dois ou três, que lhe escondiam todos os outros, e representavam por si sós a humanidade completa. O mundo dos embaixadores caminhava sobre assoalhos luzentes, em salões com lambris de espelhos, em torno de mesas ovais cobertas com um tapete de veludo com franjas de ouro. Havia ali vestidos de cauda longa, grandes mistérios, angústias dissimuladas sob sorrisos. Vinha depois a sociedade das duquesas; nela as pessoas eram pálidas; levantavam-se às quatro horas; as mulheres, pobre anjos! Usavam barra inglesa na fímbria de suas saias, e os homens, capacidades desconhecidas sob aparências fúteis, aguavam os seus cavalos em partidas de prazer, iam passear em Bade na estação do estio, e, pelos quarenta anos finalmente, casavam-se com herdeiras. Nas cabines de restaurante onde se janta depois da meia-noite, ria, à claridade das velas, a multidão dissonante dos homens de letras e das atrizes. Esses eram pródigos como reis, cheios de ambições ideais e de delírios fantásticos. Era uma existência acima das outras, entre o céu e a terra, nas tempestades, algo de sublime. Quanto ao resto do povo, estava perdido, sem lugar preciso, e como não existindo. Quanto mais as coisas, aliás, eram vizinhas, mais a sua mente se desviava delas. Tudo que a cercava de imediato, o campo enfadonho, pequenos burgueses imbecis, mediocridade da existência, parecia-lhe uma exceção no mundo, um acaso particular em que ela se encontrava presa, ao passo que para além se estendia, a perder de vista, o imenso país das felicidades e das paixões. Ela confundia, no seu desejo, as sensualidades do luxo com as alegrias do coração, a elegância dos costumes e as delicadezas do sentimento. Não eram necessários para o amor, como para as plantas indígenas, terrenos preparados, uma temperatura particular? Os suspiros ao luar, os longos abraços, as lágrimas que correm nas mãos que se abandonam, todas as febres da carne e os langores da ternura não se separavam pois do balcão dos grandes castelos que estão cheios de lazeres, de um boudoir de cortinas de seda com um tapete bem espesso, jardineiras repletas, um leito montado sobre um estrado, nem do cintilar das pedras preciosas e das fitas da libré. O rapaz do correio, que toda manhã vinha fazer o curativo em sua égua, atravessava o corredor com seus grandes tamancos; a camisa tinha buracos, os pés estavam nus nas chinelas. Era esse o palafreneiro de calças curtas com que era preciso contentar-se!"
(“Madame Bovary”, Gustave Flaubert - 1857) [1]
"Lá você vai encontrar a minha querência. O lugar que eu amei. Onde os meus sonhos emagreceram. Meu povoado, levantado sobre a planície. Cheio de árvores e de folhas, como um cofre onde guardamos nossas memórias. Você vai sentir que ali a gente gostaria de viver para a eternidade. O amanhecer; a manhã; o meio-dia e a noite, sempre os mesmos; mas com a diferença do ar. Lá onde o ar muda a cor das coisas; onde a vida se ventila, como se fosse um murmúrio; como se fosse um puro murmúrio da vida…"
(“Pedro Páramo”, Juan Rulfo - 1955) [2]
O primeiro trecho acima, destacado de “Madame Bovary”, se encontra no capítulo nove da primeira parte do romance. Nesse momento da narrativa, Charles Bovary já perdeu sua primeira esposa, conheceu a jovem Emma Rouault e se casou com ela. Agora eles moram em Tostes e Emma apresenta os primeiros sinais de enfado diante de um casamento apático e de um marido ordinário. Ela mantinha, até ali, esperanças de uma vida com felicidade, paixão e embriaguez, palavras que “lhe tinham parecido tão belas nos livros” (p.114). Os primeiros dias, a lua de mel, prometiam ser “os mais belos dias de sua vida” (p.121). Mas as promessas não se cumprem. A rotina anódina se impõe. Emma começa a ceder aos devaneios. Após uma festa, acaba por ter em mãos a cigarreira de um visconde. Mas ela “estava em Tostes. Ele estava em Paris agora” (p.140).
Assim, Paris, um mundo misterioso e sedutor, surge em sua imaginação, opondo cidade e campo, fixando a ideia de uma capital requintada ao lado de uma província tacanha. Emma quer saber tudo a respeito de Paris. Ela assina o La Corbeille, jornal de moda parisiense, e o Sylphe des Salons, jornal sobre a vida da capital. Ela também “comprou um guia de Paris e, com a ponta do dedo, no mapa, fazia andanças pela capital” (p.141). Ao comparar diferentes realidades, tenta dividi-las, classificá-las, entender quem passa por onde. Sua mente limitada “só percebia dois ou três” e para ela isso representava “a humanidade completa”. Emma idealiza as primeiras camadas nesse sonho, vindo primeiro “o mundo dos embaixadores” e “vestidos de cauda longa”; depois vindo as duquesas e os homens que aos quarenta anos “casavam-se com herdeiras”; logo os homens de letras e atrizes, “cheios de ambições ideais e de delírios fantásticos”; por fim, o extrato que incomoda Emma, justamente por ser aquele que está mais perto dela. Ela não gosta, ou não quer, defini-los, pois seria pensar por demais neles e, por consequência, nela própria. Eles são o “resto do povo”, “sem lugar preciso”. Ela está presa a estes, apartada do “país das felicidades e das paixões”. O que a cerca de imediato é o que há de pior, e do que está mais perto é o que sua mente mais deseja se desviar: o campo enfadonho, os pequenos burgueses imbecis.
A rejeição ao seu entorno, a negação de sua vida tal como ela se apresenta diante dela, sua tendência ao escapismo através das histórias românticas dos livros, sabemos, é o que moverá a história adiante: Emma vai buscar, primeiro em Rodolphe, depois em Léon, sua salvação. Não a encontrando, seu desespero patético a levará à negação máxima da realidade e suas consequências: tira a própria vida ingerindo veneno. Voltaremos a “Madame Bovary” mais adiante, mas já conseguimos identificar uma ligação entre a descrição da realidade e as pessoas que a compõem. A paisagem, o terreno — a província, e também seu contrário, Paris —, ganham contornos a partir da descrição de quem habita esse espaço. Há uma ligação entre caráter e geografia, como o romance ao fim mostrará, inexorável. Também é possível identificar que Emma tem uma visão única do que a cerca. Sua mente trabalha para tentar interpretar a realidade de modo a melhor favorecê-la — ou poupá-la. Conforme Lydia Davis (2010) elucida sobre as intenções de Flaubert na fase de planejamento do romance: “Seria um livro não só sobre uma mulher cujo caráter determinava fatalmente o curso de sua vida como também um livro acerca do lugar em que ela vivia e de seu efeito confinante sobre ela”. [3]
Por sua vez, o breve trecho destacado de “Pedro Páramo” aparece por volta do meio do romance, logo após lermos apenas pela segunda vez o nome de Juan Preciado, personagem que abre o livro e que parecia ser, inicialmente, o nosso “protagonista”. Neste momento, ele chegou a Comala a pedido da falecida mãe, para buscar o pai, Pedro Páramo. Outros personagens já ganharam espaço na trama (menos trama e mais fios independentes que, por breves instantes, se cruzam e se amarram, com menos ou mais força), como Dorotea e Eduviges; Já escutamos falar de Miguel Páramo e das terras de Media Luna. Ainda estamos próximos de Juan, que parece nos guiar pelas ruas e casas de Comala. As vozes que surgem ainda parecem conversar com ele, cara a cara, em um diálogo. Logo, contudo, mergulharemos cada vez mais fundo no solo de Media Luna e na história da figura misteriosa chamada Pedro Páramo, esquecendo a missão inicial que introduz o romance. Juan Preciado some de nossa vista imediata.
A passagem não passa despercebida por quem corre o olho pelas páginas de “Pedro Páramo”. Destacada, está em itálico na obra de Rulfo, assim como outras seis pequenas passagens. São os únicos trechos destacados em todo o romance, o que levanta curiosidade. Em um romance polifônico e multitemporal, onde passado e presente se misturam, onde diferentes personagens iniciam suas falas e rememorações sem serem explicitamente introduzidos, onde “ecos” e “murmúrios” perpassam diálogos e descrições, Rulfo não faz questão de facilitar o trabalho do leitor com marcações gráficas. Não há qualquer tentativa de dividir parágrafos ou trechos do livro para que o leitor entenda tais diferenças nos aspectos de tempo, espaço e enredo. Não há grafismos para avisar que o tempo mudou de Juan para a infância de Pedro Páramo, da morte de Miguel para o presente de Eduviges. Ou para avisar que certo monólogo a surgir repentinamente não ocorre na camada do presente da lembrança, mas é eco de outro tempo, seja passado ou futuro, que nasce de algum lugar, de um personagem da própria lembrança ou do personagem de uma camada mais superficial que havia ficado em modo de espera — às vezes, indefinidamente — enquanto surgia a reminiscência. Se o autor não se preocupou em guiar a leitura, por que optaria por marcar em itálico estes sete “ecos específicos”? O que ele deseja apontar com o grifo?
O trecho acima assinalado é o último a aparecer em itálico. Assim como os outros seis, ele é um eco de fala da mãe de Juan Preciado, Dolores. Ela quem desde a primeira página indica ao filho o que fazer: “Não peça nada a ele. Exige o que é nosso. O que ele tinha de ter me dado e não me deu nunca” (p.15). Os sete pedaços em itálico giram em torno da missão que ela dá ao filho, mas, principalmente, descrevem as terras de Comala, dizem a Juan o que ele deve esperar encontrar. Frisam aspectos geográficos e também a sobrevivência de sua voz, olhar, memória. No primeiro, por exemplo, ela descreve o caminho que leva à cidade: “Sobe ou desce conforme se vai ou se vem. Para quem vai, sobe; para quem vem, desce” (p.16). No segundo, descreve Comala: “Existe, passando o desfiladeiro de Colimotes, a vista muito bela de uma planície verde, um pouco amarelada por causa do milho maduro. Desse lugar a gente vê Comala, branqueando a terra, iluminando a terra durante a noite” (p.16). Essas lembranças guiam Juan. Como ele mesmo explicita, olha para Comala com os olhos de sua mãe: “Agora, venho em seu lugar. Trago os olhos com que ela viu estas coisas, porque me deu seus olhos para ver” (p.16).
Pode-se apontar, assim, duas questões a partir dos breves momentos em itálico: a importância da lembrança da mãe e a importância da paisagem nestas lembranças. Dolores não fala de suas memórias sem evocar a paisagem. E, uma vez que a paisagem é evocada, uma vez que Comala vem à mente, não há como não ressaltar a ligação emocional. Há pertencimento e posse, como mostram os pronomes possessivos empregados: “Lá você vai encontrar a minha querência. O lugar que eu amei. Onde os meus sonhos emagreceram. Meu povoado, levantado sobre a planície”. A memória da mãe, morta, talvez carregue a maior carga emocional da obra. Talvez Rulfo tenha posto em destaque tais trechos para mostrar o peso inescapável da voz da matriarca. Talvez para apontar os únicos momentos de memória que realmente pertencem a Juan Preciado — todos os outros, por mais misteriosos que sejam, logo se revelam dos outros, não de Juan. Ou talvez sejam os únicos trechos a ocorrerem em um “presente”, no primeiro plano narrativo, enquanto todo o restante seja um desmembramento desse ponto.
As passagens dos romances de Flaubert e Rulfo apresentam algumas características em comum. Ambas introduzem uma paisagem. São descrições de espaços que englobam os personagens. Em Flaubert, Tostes. Em Rulfo, Comala (uma Comala fictícia, não a Comala real que existe no mapa mexicano). As cidades são provincianas, não centrais em seus países. Também, ambas são descrições guiadas por personagens mulheres, Emma e Dolores, respectivamente. Um terceiro ponto em comum é que as descrições não são diretas, objetivas — em outros momentos dos romances há descrições mais diretas, vindas de um personagem ou de um narrador onisciente —, quase não são descrições: revelam o espaço narrativo a partir de uma visão lateral, não central, criam o espaço na mente do leitor a partir da subjetividade e da descrição do que nele está contido. Unindo esses pontos está o fato de que o espaço está intimamente ligado aos personagens em ambos os romances, não são apenas paisagens, descritas protocolarmente pelo mero exercício de construção de verossimilhança ou cumprimento de qualquer obrigação formal que o romancista possa ter: espaço se funde ao personagem, faz parte dele. Cada uma dessas descrições contará com uma função clara dentro de seus respectivos romances, além de serem desenvolvidas por um tipo de narrador específico. Além disso, revelam, em ambos os casos, uma inadequação de seus personagens em relação aos seus destinos. Mikhail Bakhtin: “Um dos principais temas anteriores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade”. [4]
Comecemos por “Madame Bovary”. A província de Tostes não é descrita, a rigor, no trecho que destacamos. Há uma descrição não de paisagem, mas de cenas. Cenas de Paris e cenas da província. Mas, pelo contraste entre as duas instâncias, entende-se o que é a capital, a distância, e a província, a realidade de Emma. Sabemos, também, com qual Emma sonha e qual ela despreza. “Costumes de província” não é, à toa, subtítulo do romance de Flaubert: a província é peça-chave. De um lado há Emma, sonhadora, idealista, que se sente superior ao seu redor, acredita ser merecedora de mais. Do outro há a província e seus homens. É a mediocridade, a derrota, a pequeneza, o fastio, o oposto do ideal mostrado em seus livros prediletos, os pequeno-burgueses. Em outros pontos do romance, Flaubert destaca, em pequenos detalhes, a banalidade da realidade provinciana de Emma. No capítulo quarto da primeira parte, vemos que o casamento não foi um conto de fadas: Emma para a todo instante para tirar pedaços de mato do vestido (p.106) e o barulho do violino “fazia fugir de longe os passarinhos” (p.106). No capítulo seguinte, Emma repara com decepção no seu novo lar (p.111), onde a janela dá direto para a estrada de terra, onde a sala de estar é unida à de jantar, onde os cheiros da cozinha invadem os demais cômodos. Também há descrições objetivas e mais realistas, como a descrição inicial de Yonville-l’Abbaye, no primeiro capítulo da segunda parte. Mas até a descrição aparentemente lacônica do narrador resulta em um ponto que só destaca a mediocridade local: uma região onde a língua é sem sotaque e a paisagem é sem caráter, região onde “se fazem os piores queijos Neufchâtel de toda a redondeza” e onde é preciso nutrir muito a terra para que haja chance de algo nascer, pois o solo é cheio de areia e pedra (p.156).
Emma é fruto dessa província. Não poderia ser diferente. Só há “história”, romance, porque Emma está na morosidade provinciana. Em Paris, padeceria das mesmas angústias? Provavelmente não. O cenário não é apenas cenário, mas enredo. Como analisa David Lodge (1992): “(...) description in a good novel is never just description. The sense of place was a fairly late development in the history of prose fiction. As Mikhail Bakhtin observed, the cities of classical romance are interchangeable backcloths for the plot” [5]. Percy Lubbock (1976) elucida a ligação entre Emma e seu entorno, tornando qualquer descrição espacial do livro, paisagem e seus habitantes, essencial no romance: “Flaubert decide situá-la em certa cidade provinciana, cheia de personagens singulares; dá à cidade e à sua gente uma realidade extraordinária; não se trata de uma cidade quelconque, generalizada, mas de uma cidade tão individual e reconhecível quanto possível. Não obstante - sempre supondo que Emma, pelo que representa, é todo o seu tema — ele deve ter focalizado essa cidade, só porque, no seu entender, ela explicava e expunha a heroína melhor do que outra qualquer. Se Flaubert tivesse imaginado que uma mulher de sua laia, medianamente ambiciosa, tolamente romântica, revelaria melhor sua qualidade num mundo diferente — no meio do êxito, da liberdade, da riqueza — ele a teria colocado em outro cenário. (...) O mundo de Emma, como é agora, no livro de Flaubert, teria de ser considerado, portanto uma consequência de Emma, inventado para prestar-lhe um serviço, descrito para poder descrevê-la. Ou seja, o seu mundo pertenceria ao tratamento da história”. [6]
Lubbock aponta que toda a ideia e propósito do romance de Flaubert seriam destruídos se Emma fosse transportada para condições mais ricas e mais amplas. O tema central do livro estaria arruinado. Pois o cenário provinciano atua sobre ela, faz dela o que ela é, é tão essencial quanto ela mesma. Há dois atores principais, “de um lado, uma mulher e, de outro, tudo o que a cerca”. [7] Ele completa, ressaltando a centralidade do cenário na obra: “A cidade e a sua vida não estão por trás da heroína, em tons abafados, para representar um fundo de quadro; estão com ela, plenamente, em primeiro plano; seu valor no quadro é tão forte quanto o dela”. [8]
Na passagem em foco, é pela descrição dos seres medíocres que entendemos a paisagem medíocre que sufoca Emma. O trecho parece em terceira pessoa, parece vir de um narrador onisciente, mas estamos diante de um discurso indireto livre que dá voz ao interior do personagem. Emma é evocada de nome por esse narrador onisciente. A linguagem é do narrador, a escolha vocabular é do autor, mas estamos diante do subjetivismo de Emma, somos apresentados aos sentimentos dela diante dos moradores de Paris e de sua cidade. Sobre a onisciência do narrador e a aparição do discurso do personagem, James Wood (2011) analisa: “A chamada onisciência é quase impossível. Na mesma hora em que alguém conta uma história sobre um personagem, a narrativa parece querer se concentrar em volta daquele personagem, parece querer se fundir com ele, assumir seu modo de pensar e de falar. A onisciência de um romancista logo se torna algo como compartilhar segredos; isso se chama estilo indireto livre, expressão que possui diversos apelidos entre os romancistas — ‘terceira pessoa íntima’ ou ‘entrar no personagem’”. [9] Mas há certa ironia, como aponta Wood: diante do discurso indireto livre, vemos através dos olhos de um personagem, mas somos incentivamos a ver mais do que ele conseguiria ver. O autor precisa ajudar o personagem, mas precisa equilibrar a sua palavra com a dele: “De um lado, o autor quer ter sua palavra, quer ser dono de um estilo pessoal; do outro, a narrativa se volta para os personagens e para a maneira deles de falar”. [10]
Ali, observamos Emma pensar nas figuras de Paris e da província, e disso construir a descrição desses ambientes, e o discurso indireto livre dá espaço para julgamentos dela: na sociedade das duquesas, as mulheres são “pobres anjos!” (a exclamação é reveladora: só pode representar uma reação íntima de Emma, jamais seria uma exclamação vinda de Flaubert); do rapaz do correio observa “o palafreneiro de calças curtas com que era preciso contentar-se!” (novamente a exclamação). Mas ela é néscia. Jamais teria plena articulação da complexidade do que pensa e sente. Flaubert, discretamente, precisar ajudá-la a ir além, sem quebrar o realismo da cena e sem se tornar um autor intrusivo, que interromperia a narração para emitir julgamentos. É Flaubert que a ajuda a compreender, com as palavras corretas, que o campo é “enfadonho”, que há “pequenos burgueses imbecis”, que há “mediocridade” na existência; e também é Flaubert quem revela coisas que nem Emma sabe, que “quanto mais as coisas, aliás, eram vizinhas, mais a sua mente se desviava delas”, que ela “confundia, no seu desejo, as sensualidades do luxo com as alegrias do coração”. Novamente Lubbock sobre Emma: “Sua inteligência é tão fraca e tão caprichosa que não lhe proporciona uma explicação suficiente de seu mundo. A cidade de Yonville nos seria muito mal revelada se Flaubert se ativesse à medida das percepções dela; seria rala e vazia, pouco mais que um monótono fundo de quadro para a formosa aparição dos homens que ela deseja. (...) Mas, para nós, para o espectador, eles fazem parte do retrato dela, representam o peso morto da vida provinciana, que é o fato saliente no seu caso. (...) Seu par de olhos não basta (...). A inteligência do autor, portanto, e nenhuma outra, terá de proporcionar o que falta”. [11] Erich Auerbach (1946) analisa de modo semelhante a tarefa linguística de Flaubert diante do interior de Emma a ser exteriorizado: “(...) o que é apresentado em primeiro lugar é a personagem Emma e, através dela, apresenta-se a situação. Ainda não se trata, contudo, como em alguns romances em primeira pessoa e em outras obras posteriores do mesmo tipo, da simples reprodução do conteúdo da consciência de Emma, daquilo que sente e do modo como o sente. (...) Não é Emma quem fala aqui, mas o escritor. (...) certamente Emma sente e vê tudo isto, mas ela não seria capaz de ajuntá-lo desta forma (...) ela certamente tem uma tal sensação, mas se quisesse exprimi-la, não o faria desta forma; para chegar a esta formulação faltam-lhe a agudeza e a fria honestidade que resulta de uma prestação de contas consigo mesmo. Todavia, não é de modo algum a existência de Flaubert, mas a de Emma a única que se apresenta nestas palavras; Flaubert não faz senão tornar linguisticamente maduro o material que ela oferece, em sua plena subjetividade.”[12]
O efeito que produz o vigor da linguagem e da representação no discurso indireto com o íntimo pensamento dos personagens e suas nuances cria a riqueza necessária para manter de pé a descrição que põe em movimento paisagem e seus habitantes. Diz Henry James, em texto de 1884: “Capturar o verdadeiro tom e truque, o ritmo estranho irregular da vida, essa é a tentativa cujo vigor mantém a Ficção em pé. À proporção que vemos vida no que ela nos oferece sem rearranjos, sentimos que estamos tocando a verdade (...)”. [13] Parece ser a tarefa literária de Flaubert elucidar a complexidade de sua personagem, lembrar o leitor que ela, também, é um ser de percepção e nuances. Como lembra Viktor Chklovski em “A Arte do Procedimento” (1917), o ato de percepção em arte é um fim em si mesmo. É tarefa da arte a liberação do objeto do automatismo perceptivo. Ele cita um trecho de diário de Liev Tolstói: “Se toda vida complexa de muita gente se desenrola inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido”. É tarefa da arte devolver a sensação de vida. [14]
No caso de “Pedro Páramo”, a descrição geográfica é indissociável da própria existência do personagem. Dolores é Comala, assim como Comala é Dolores. Comala é “como um cofre onde guardamos nossas memórias”. A importância do relevo, da terra, da paisagem, está explícita desde o título do romance e também em seus dois títulos anteriores, rejeitados por Rulfo durante o processo de escrita. Pedro remete a pedra, enquanto Páramo remete a um planalto deserto. Um título anterior do livro era “Los Desiertos de la Tierra”, os desertos da terra. O outro era “Los Murmullos”, os murmúrios, o que, novamente, explicita a ligação entre as vozes e o povo com o tempo-espaço das terras perdidas entre passado e presente. Aponta Jefferson Cardoso Oliveira (2013): “Com base em texto de Octávio Paz, Valenzuela (1989) [Diógenes Fajardo Valenzuela] aponta que o título final do romance sintetiza bem os títulos anteriores e enfatiza o caráter mítico-épico do personagem central: Pedro representaria o fundador, a pedra, o guardião e senhor de um paraíso; quando morto, o páramo é o seu antigo jardim, hoje chão seco, sedento, murmúrio de sombras e de eterna incomunicabilidade”. [15]
Os moradores de Comala não conseguem escapar da figura autoritária de Pedro Páramo. Como analisa Yvonne Ortiz Moran (2014), “Os moradores de Comala estão presos a Pedro Páramo por possuir uma dependência emocional, espacial, política e econômica com relação a ele. Atados à terra por fatalidade e falta de opção”. [16] Enquanto Dolores descreve Comala ao filho, acaba por se descrever, situar sua própria subjetividade. É na planície, cheia de árvores e de folhas, que está sua “querência”. É no povoado onde “o ar muda a cor das coisas” que estão suas memórias. O tempo parou em Comala, dias e noites parecem os mesmos. Só os ares mudam. “Lá onde o ar muda a cor das coisas”. Só então “a vida se ventila, como se fosse um murmúrio”. São comuns as referências à atmosfera de Comala. Só o vento sopra naquela terra parada, levando os ecos das vozes do passado, ecos que “parece até que estão trancados no oco das paredes ou debaixo das pedras” (p.53). A abertura do romance já aponta para o ar: “Aquele era o tempo da canícula, quando o ar de agosto sopra quente, envenenado pelo odor apodrecido das flores do sabão-de-macaco” (p.15).
Dolores é apenas um dos inúmeros narradores do romance. A fala dela aparece em itálico e, em alguns momentos, também entre aspas, e é facilmente identificável. Sabemos, ao menos nos trechos marcados, quando ela conduz o romance, quando ela está em cena. Em outros momentos, o discurso direto é de Juan. Em outros, um narrador onisciente. Mas, na maioria das vezes, o discurso direto não se avisa e é preciso investigação para descobrir quem é o narrador naquele ponto da narrativa, quem fala em primeira pessoa. Analisa Davi Arrigucci Jr. (1987): “O discurso ficcional mostra assim um persistente tom meditativo, ruminado na recordação, marcado pela angústia, indeterminado pela abolição das fronteiras entre passado e presente”. [17]
O romance se inicia em primeira pessoa, dá voz a Juan Preciado. Um narrador onisciente surge em intervalos, mas o discurso direto em primeira pessoa de vozes do presente e passado vão dominando o primeiro plano, esfumaçando a voz desse narrador e erodindo a sequência narrativa. Da primeira pessoa vamos para um bloco em terceira pessoa, elíptico, onde o autor persiste em não nomear, não explicar, não dividir os vários episódios que se sucedem. Os pontos de vista são múltiplos: os pontos de vista do povo. E isso é central para Rulfo. Diz Davi Arrigucci Jr. (2010): “Em Rulfo e Rosa há uma interiorização do ponto de vista narrativo do ângulo do pobre, o que configura uma visão de dentro do mundo ficcional. Nos dois, a fala interior do pobre se mostra em toda a sua complexidade, não menos complexa do que a de qualquer outro personagem de nível social superior em qualquer parte do mundo”. [18] A multiplicidade de vozes e de tempos é típica do romance realista do século 20, como aponta Erich Auerbach (1946): “Nas peculiaridades aqui constatadas no romance realista do período entre guerras - representação consciente pluripessoal, estratificação temporal, relaxamento da conexão com os acontecimentos externos, mudança da posição da qual se relata -, as quais estão todas entrelaçadas e são difíceis de serem separadas (...)”. [19] Auerbach não leu Rulfo, mas a descrição vale para o seu realismo mexicano, ainda que este já venha carregado dos elementos fantásticos latino-americanos.
Um narrador clássico em terceira pessoa usaria de toda sua onisciência para explicar o que se alinha. Mas o narrador de Páramo não se pronuncia. Seu relato é interrompido pelos devaneios em primeira pessoa e entre aspas. O enredo não se desloca inteiramente para o tempo-espaço daquela voz, mas nos movemos de lugar mesmo assim. O vento trouxe o eco de uma lembrança e é preciso escutá-la — personagens podem se projetar no eixo tempo-espaço e o leitor pode ir com ele. Novamente Yvonne Ortiz Moran (2014): “a memória da personagem a projeta para outro lugar, fazendo com que o leitor também se desloque para esse outro lugar em que Dolores gostaria de estar. Por isso o personagem também passa a ser espaço na medida em que podemos nos deslocar de um local a outro por intermédio de seus pensamentos, memórias e desejos de estar ou não estar”. [20] Pois “Comala, deste modo, é um povoado que não somente mobiliza imagens geográficas, funciona também como um lugar de produção de narrativas e interpretações que as próprias personagens fazem e projetam sobre a cultura local e seus dilemas”. [21] A paisagem é o próprio caminho narrativo em “Pedro Páramo”: afundamos na terra, nos enterramos a cada página, e o que sobra para depois da devastação é a terra estéril, o campo árido e estático que cobra respostas do futuro.
NOTAS
1. FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. pp.142-143. Tradução de Mário Laranjeira. / Demais menções ao texto se referem a esta edição e tradução.
2. RULFO, Juan. Pedro Páramo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2019. - 7ª edição. p.70. Tradução de Eric Nepomuceno. / Demais menções ao texto se referem a esta edição e tradução.
3. Prefácio à edição de “Madame Bovary” (ver nota 1). p.24
4. BAKHTIN, Mikhail. “Epos e Romance (Sobre a metodologia do estudo do romance)” in Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec/Editora Unesp, 1988. p.425
5. LODGE, David. The Art of Fiction. England: Penguin Books, 1992. p.57
6. LUBBOCK, Percy. A Técnica de Ficção. São Paulo: Cultrix/Editora da USP, 1976. p.55
7. Ibid., p.56
8. Ibid., p.58
9. WOOD, James. Como Funciona a Ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p.22
10. Ibid. p.38
11. LUBBOCK, Percy. A Técnica de Ficção. São Paulo: Cultrix/Editora da USP, 1976. p.59
12. AUERBACH, Erich. “Na mansão de la Mole” in Mimesis. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. 4ª edição. p.433-434
13. JAMES, Henry. A Arte da Ficção. São Paulo: Editora Imaginário, 1995. p.38
14. CHKLOVSKI, Viktor. "A arte como procedimento" in Teoria da Literatura - Formalistas Russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. 4ª edição. p.44
15. OLIVEIRA, Jefferson Cardoso. Sítios da morte sem fim: espaço e focalização em Pedro Páramo. João Pessoa: 2013. p.18 - Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Paraíba
16. MORAN, Yvonne Ortiz. Uma análise dos espaços no romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo. Campinas: 2014. p.48 - Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas
17. ARRIGUCCI JR., Davi. “Juan Rulfo: Pedra e Silêncio”, in Enigma e Comentário: Ensaios Sobre Literatura e Experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.p.168
18. ARRIGUCCI JR., Davi. “Fala Sobre Rulfo” in O guardador de segredos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.170
19. AUERBACH, Erich. “A meia marrom” in Mimesis. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. 4ª edição. p.492
20. MORAN, Yvonne Ortiz. Uma análise dos espaços no romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo. Campinas: 2014. p.72 - Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campina
21. Ibid., p.74
REFERÊNCIAS
ARRIGUCCI JR., Davi. “Fala sobre Rulfo”, in O guardador de segredos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ARRIGUCCI JR., Davi. “Juan Rulfo: Pedra e Silêncio”, in Enigma e Comentário: Ensaios Sobre Literatura e Experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. 4ª edição.
BAKHTIN, Mikhail. “Epos e Romance (Sobre a metodologia do estudo do romance)” in Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec/Editora Unesp, 1988.
CHKLOVSKI, Viktor. "A arte como procedimento" in Teoria da Literatura - Formalistas Russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. 4ª edição.
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Citação: DEARO, Guilherme. "Entre Tostes e Comala: a descrição subjetiva das províncias em Flaubert e Rulfo". São Paulo: FFLCH/USP, junho de 2019.
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