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Guilherme Dearo

Impressões realistas da cidade por Cesário Verde

Atualizado: 28 de jun.

Análise das descrições de Lisboa em O Sentimento Dum Ocidental



A poesia de José Joaquim Cesário Verde (1855-1886), poeta que publicou pouco em vida e só passou a ser lido e estudado atentamente após sua morte, se insere no movimento realista português, estruturado a partir do que ficou conhecido como Questão Coimbrã, em um momento de profundas transformações sociais, políticas e econômicas para Portugal. Conforme explicam Benjamin Abdala Júnior e Maria Aparecida Paschoalin (1990: 98), levantes como a Revolta da Maria da Fonte no Minho (1846) e a Patuleia (1847) marcaram um período de descontentamento em todos os estratos, em especial o dos camponeses, prenunciando o fim do Romantismo. A crise política gerada pelos movimentos revolucionários pequeno-burgueses, que serviam de escape para grupos sociais frustrados anunciarem seus desejos de transformação, culminou com o golpe de Estado do marechal Saldanha e a instituição da monarquia parlamentarista, iniciando em 1851 o período que ficou conhecido como Regeneração. Aquela época, com política econômica desenvolvimentista e regime liberal, viu o aumento da produção agrícola, a ida dos grandes proprietários de terra para os centros urbanos, o surgimento da massa operária, o crescimento da classe média citadina e o desenvolvimento da classe média comercial. Beneficiado pelas parcerias econômicas com a Inglaterra, Portugal viu sua indústria se desenvolver, assim como o crescimento de sua malha ferroviária e de seus meios de comunicação (JÚNIOR e PASCHOALIN 1990: 99).


A década de 1860 marcou o fim do Romantismo e a introdução do espírito realista, explica Massaud Moisés: “[...] Era inevitável o encontro sangrento entre a mentalidade ultrapassada e a nova visão das coisas a se impor com violência e rudeza, graças a um grupo de jovens que ocupam os bancos da Universidade de Coimbra entre 1858 e 1865. Constituindo-se a primeira grande geração de escritores portugueses conduzida por comum ideal de vida, a única geração no sentido rigoroso do termo, cresceu sob o influxo de fórmulas civilizacionais de vanguarda, aquelas que agitavam a Europa do tempo: Evolucionismo, Socialismo, Positivismo” (MOISÉS 1978: 123). Em 1861, Antero de Quental (1842-1891) funda na universidade a Sociedade do Raio, unindo cerca de duzentos estudantes, entre eles Teófilo Braga (1843-1924), em um propósito de agitar o ambiente acadêmico conservador. O romântico António Feliciano de Castilho (1800-1875) publica em 1865 longa carta denunciando a poesia do novo grupo, crítica imediatamente rebatida por Quental. Os dois lados da disputa ganham adeptos, inaugurando a Questão Coimbrã e a derrocada do Romantismo português. Em 1871, o grupo anti-Castilho volta a se reunir em Lisboa, nas Conferências Democráticas do Casino Lisbonense. Ambiciosas, tentavam traçar um plano de reforma para a sociedade portuguesa, anunciando um programa que visava transformação social, moral e política; que desejava um Portugal aberto para a Europa e para suas ideias, fugindo do provincianismo; que almejava participar das grandes questões da Filosofia e da Ciência modernas (SARAIVA e LOPES 1975: 899). Era o surgimento da Geração de 1870.


Conforme apontam António José Saraiva e Óscar Lopes, essa geração encontra um ambiente de relativa prosperidade da burguesia rural, as instituições parlamentares funcionando, uma ideologia oficial que exaltava a noção de progresso e uma ligação -- técnica, econômica e cultural -- com outros países europeus cada vez mais intensa. Coimbra, inclusive, se liga à rede ferroviária europeia a partir de 1864. Nesse contexto, os estudantes da cidade passam a olhar mais ativamente para países como França e Inglaterra e a fazer comparações críticas. Em solo nacional, a prosperidade burguesa não melhora as condições de vida da massa campesina, que vai buscar trabalho nas cidades que começavam a se modernizar (SARAIVA e LOPES 1975: 891-893). Assim, o movimento realista português está ligado, como sintetizam Júnior e Paschoalin, à ascensão da pequena burguesia citadina e ao desejo de fugir de uma “arte pela arte”, buscando, sim, uma arte voltada para os problemas sociais, com engajamento: “É uma arte que se coloca também contra o tradicionalismo romântico e procura incorporar os descobrimentos científicos de seu tempo” (JÚNIOR e PASCHOALIN 1990: 103). A literatura que trazia os problemas sociais e políticos vai ao encontro da necessidade de uma nova massa urbana ávida por leitura, surgida a partir do desenvolvimento material oriundo dos avanços econômicos. A vida cultural nas cidades se ativa, a produção literária cresce, os novos habitantes da cidade desejam consumir jornais, revistas e romances seriados. Há demanda do público por ver seus problemas cotidianos retratados (JÚNIOR e PASCHOALIN 1990: 99-100) e a literatura realista traz respostas e esses anseios.


Entre os sentidos ideológicos dos novos escritores realistas estão pontos como a crítica ao tradicionalismo vazio da sociedade portuguesa, muito distante da realidade; a crítica ao conservadorismo da Igreja; a defesa da visão objetiva da realidade, buscando o escritor construir personagens concretos e em relação aos seus meios; a preocupação com reformas sociais, como democratização do poder político; e a representação da vida contemporânea em todos os seus detalhes (JÚNIOR e PASCHOALIN 1990: 105). Define Moisés: “Antirromânticos confessos, pregavam e procuravam realizar a filosofia da objetividade: o que interessa é o objeto, o não eu. Para alcançar concentrar-se no objeto, tinham de destruir a sentimentalidade e a imaginação romântica e trilhar a única via de acesso à realidade objetiva: a Razão, ou a inteligência” (MOISÉS 2013: 229). Quanto aos poetas do movimento realista português, quatro são as configurações assumidas pela poesia na época, como aponta Moisés (MOISÉS 2012: 413): uma poesia realista, que se identificava com ideais revolucionários da geração de 1870, representada por Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Antero de Quental, Teófilo Braga; uma poesia metafísica, representada por Quental e, por vezes, por Gomes Leal e Guerra Junqueiro; uma poesia de “veleidades parnasianas”, que ficava entre formalista e lírica ou satírica, com nomes como João Penha, Antônio Feijó e Guilherme Braga; por fim, uma poesia do cotidiano, com foco em temas considerados até ali “não poéticos”, representada por Cesário Verde.


Pouco lido em vida, Cesário Verde, filho de família próspera, morreu jovem vitimado pela tuberculose. Os poucos poemas que publicou em periódicos tiveram pouca recepção. Após sua morte, o amigo Silva Pinto decidiu reunir todo o trabalho do poeta, publicando em 1887 o volume "O Livro de Cesário Verde" em 200 exemplares. Organização dos poemas, ordem e edição ficaram a cargo dos gostos pessoais de Pinto. Na década de 1940, Luís Amaro de Oliveira publica estudo onde questiona a delicada questão das interferências feitas por Pinto. Décadas depois, em 1964, Joel Serrão organiza uma nova coletânea, mais completa, com textos inéditos e cartas, e colocando os poemas em ordem cronológica (PASCHOALIN 1982: 8). Com seus poemas ("Nós", "Cristalizações" e "Num Bairro Moderno" estão entre os mais famosos), Cesário se afasta totalmente do Romantismo, fugindo dos poemas que só falavam de “sentimentos dignos”, que exaltavam a pátria e falavam de amores extremados por mulheres ou de grandes sofrimentos individuais. Ele é o primeiro a falar do presente, do cotidiano, das coisas vistas nas ruas, a tomar a cidade como espaço poético principal: “Cesário inverte tudo isso: sua poesia documenta o estado em que vive seu país, sublinhando a condição triste do homem português” (PASCHOALIN 1982: 98-99).


"O Sentimento Dum Ocidental", publicado pela primeira vez em 10 de junho de 1880 no especial do Jornal de Viagens (Porto), comemorativo ao tricentenário da morte de Camões, é composto por quatro partes. Cada parte (“Ave-Maria”, “Noite Fechada”, “Ao Gás” e “Horas Mortas”) traz onze estrofes de quatro versos cada (totalizando 176 versos). O longo poema é uma descrição do passeio a pé que o eu-lírico, poeta-andarilho, faz pelas ruas de Lisboa em um fim de tarde. Nessa caminhada, o poeta narra, ao mesmo tempo, o que vê e o que tal visão causa em seu interior. É um retrato móvel e realista das ruas de Lisboa, sem abrir mão das elucubrações íntimas. As cenas cotidianas revelam um Portugal em transformação. Segundo Saraiva e Lopes (1975: 1024), “Cesário consegue valorizar poeticamente o vocabulário e o tom de fala mais correntios na linguagem coloquial urbana embalando o leitor num ritmo que ondula entre a atenção ao pormenor e um abrir de horizontes, entre a sátira ou a degradação, que nos oprimem, e um relance de beleza real, o que nos expande”. Luciana Marino do Nascimento analisa que o poeta “põe-se a recortar a cidade em níveis diferentes e planos sobrepostos, observando o processo de transformação do espaço urbano, que se dá sob o signo do estranhamento de uma tradição cultural que localizava o país numa posição de centro” (NASCIMENTO 2003: 11). Conforme resume a pesquisadora, em "Sentimento Dum Ocidental" “entra em cena um sujeito herdeiro da tradição da cultura ocidental, que perfaz um caminho reflexivo, através de um ‘eu’ solitário que está a buscar a sua identidade poética” (NASCIMENTO 2003: 13). Nessa caminhada, como um flâneur baudelairiano, se inscrevem o caráter empírico (a realidade em si) e o caráter alegórico (as construções derivadas de tal realidade). O poema, com o primeiro verso de cada estrofe decassílabo e os demais dodecassílabos, se vale de adjetivos e substantivos contendo elementos visuais e pictóricos, que auxiliam na construção da cena em ação, assim como referências aos cinco sentidos, reforçando, além de um panorama completo da cidade (essa Lisboa se modernizando exala odores, solta ruídos, tem cores e sabores em seus restaurantes e tascas), o fato de que tudo ali descrito provém do que impressiona sensualmente o poeta. Nada existe para além do que ele vive e sente.


O poema funciona quase como uma narrativa em prosa, uma vez que, apesar de lírico, conta com tempo, espaço, personagens e narrador (o próprio poeta). Essa “narrativa” parece ter uma história, que carrega em si outras histórias, principalmente as vivências passadas do poeta: o sujeito que sai de casa e caminha pelas ruas da cidade. Conforme analisa Lino Moreira da Silva, parece a história de um poeta que não cabe em casa, que não cabe em si e, precisando sair, se depara com uma cidade desoladora, “causa principal do mal estar que o aflige e de que ele vai tomando (e revelando) consciência passo a passo” (SILVA 2005: 122). Em "Sentimento Dum Ocidental", como destaca PASCHOALIN (1982: 101), a rua é o próprio poema e cada passo do poema é um verso, é um fragmento de cena. Com ritmo sincopado de marcha e caminhada, o poeta apresenta fatos e emoções de maneira simultânea, se valendo do presente como tempo verbal (“Partem patrulhas de cavalaria / Dos arcos dos quartéis que foram já conventos”). A autora destaca alguns dos procedimentos formais de Verde, como substantivos que são acompanhados, geralmente, de dois adjetivos (“De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos”; “Muram-me as construções retas, iguais, crescidas”); e a aglutinação de substantivos em orações assindéticas -- orações coordenadas construídas sem conjunções -- (“E mais: as costureiras, as floristas / Descem dos magasins, causam-me sobressaltos”). Helder Macedo sintetiza os efeitos causados por tais procedimentos como similares à edição cinematográfica: “[...] os seus poemas progridem numa série de sequências aparentemente acidentais de acontecimentos justapostos cuja articulação, estruturalmente metonímica, está mais próxima da técnica cinematográfica de corte e montagem (derivada da técnica de justaposição significativa do romance realista) do que da técnica poética de associação metafórica. [...] A independência semântica e sintática de cada vocábulo na sequência assindética permite que todos eles mantenham intactos os seus valores designativos e associativos simultaneamente [...]” (MACEDO 1999: 20-21).


Em cada uma das quatro partes do poema, o poeta descreve tudo o que vê enquanto caminha pelas ruas lisboetas, entre um fim de tarde e o firmamento da noite. O olhar do poeta passa por edificações e objetos (chaminés, igrejas, carros), pessoas (lojistas, trabalhadores de oficinas, mulheres) e paisagens e elementos da natureza (maresia, fim de tarde, Lua). Esses três âmbitos impressionam o espírito do poeta, que esboça seus estados mentais: sofrimento, melancolia, morbidez etc. Este breve ensaio focará no primeiro âmbito, a descrição dos elementos arquitetônicos e urbanos da paisagem de Lisboa. A versão do poema utilizado para estudo está em PASCHOALIN 1982: 59-65. Todas as citações diretas ao poema são referentes a essa edição. O espaço físico descrito por Cesário Verde é, quase sempre, o espaço real, captado pelos olhos, como uma crônica fiel da Lisboa de 1880 que crescia em tamanho, em número de edificações, em população. Mas o espaço real não é estático, não é uma impressão ótica fixa, sendo sempre atravessado pelo tempo: conforme a tarde cai, a noite avança e os postes se acendem, o espaço muda sob o efeito de luzes, sombras, revelações e detalhes que se escondem no breu. Em alguns momentos, também, o espaço físico acaba por ser imaginado e metafórico. Falando das varinas que “Vêm sacudindo as ancas opulentas! / Seus troncos varonis recordam-me pilastras”, o elemento “pilastras” é metafórico e, não por acaso, remete a um elemento arquitetônico, como uma das peças que ajuda a construir a cidade que o poeta descreve. Em outro momento, é a imaginação do andarilho que cria “filas de capelas” e “uma catedral de um comprimento imenso”.


A descrição que Cesário Verde nos dá em "O Sentimento Dum Ocidental" cria uma pintura, uma tela de traços impressionistas, tal como a tendência de vanguarda artística que tomava conta da Europa. Conforme explica Jorge Luiz Antonio, “O Realismo em Cesário se faz, principalmente, através do Impressionismo. A relação entre Realismo e Impressionismo se apresenta de tal forma que as vinculações com a pintura se mostram implícitas. A descritividade, na grande maioria dos seus poemas, se mostra numa atitude que registra imagens visuais do real, que tanto se assemelha com a pintura, o desenho, a fotografia, a imagem, quanto com um procedimento que traz semelhança com a montagem cinematográfica” (ANTONIO 2002: 30). Na pintura, o Impressionismo representava a tendência de os pintores saírem do estúdio e tentarem captar a natureza e as cenas do cotidiano enquanto elas aconteciam, sob os efeitos de mudanças da luz. As pinceladas curtas, bruscas e até separadas entre si, fugindo da figuração hiperrealista, tentavam captar a fugacidade da cena realista tal como ela impressionava o pintor no ato de pintar. [1] Assim pode ser descrito, também, o trabalho fotográfico e “jornalístico” de Cesário Verde no poema, que sai à rua para descrever a paisagem lisboeta tal como ela o impressiona, sempre com rapidez, uma vez que tudo é passageiro e fugidio. O poeta usa frases curtas, bruscas, quebrando sequências lógicas e dando sentido de urgência e imediatismo ao poema (ANTONIO 2002: 274-275). Diz Jorge Luiz Antonio: “As coisas provocam impressões sensoriais e emocionais, e são essas impressões as que o impressionista toma como objeto ou tema de sua arte. Neste sentido de objeto-tema, frente ao objeto-coisa, os impressionistas são tão objetivos como os realistas; eles representam seu objeto escolhido (as sensações) com tanta fidelidade como o objeto eleito pelos realistas” (ANTONIO 2002: 149). Na estrutura das quatro partes do poema, analisa Antonio: “Na constante relação realidade (dois primeiros versos) X mundo interior (dois últimos versos) se configura a primeira parte. É o olhar para as coisas e a sua atitude ante elas. Na segunda parte, essa relação se desconstrói, enquanto que, na terceira parte, o elemento modernista transfigura a visão do eu-poético e fá-lo voltar a si mesmo (quarta parte)” (ANTONIO 2002: 277).


Na primeira parte, “Ave Maria”, a tarde está caindo, as luzes artificiais estão se acendendo aos poucos. Enquanto o poeta caminha, o entardecer que cai preconiza o sentimento de melancolia do andarilho. Nessas onze primeiras estrofes, o poeta descreve explicitamente: rua, gás (metonímia: os postes de iluminação pública), edifícios, chaminés, carros (carroças, não carros motorizados), via-férrea, edificações emadeiradas, boqueirões, becos, cais, hotéis, trem na praça, varandas, lojas, fábricas e carvão. Estes elementos já permitem traçar um desenho da Lisboa que se constrói na segunda metade do século 19: a cidade está se modernizando. A via-férrea liga Lisboa ao restante do país e à Europa; há muitos carros (carroças) [2] e iluminação pública; as fábricas são movidas a carvão e as chaminés não cessam de trabalhar. Além disso, o poeta já descreve uma cidade que fervilha e se amontoa: há hotéis “da moda'', há muitas lojas e varandas, há a massa que trabalha no cais, há a massa que sai da fábrica no fim do expediente. Tais elementos nunca deixam de estar ligados ao poeta, que joga a descrição da paisagem contra a descrição da reverberação interior: as “ruas ao anoitecer” provocam “melancolia”; o “gás extravasado enjoa-me”; ao errar “pelos cais a que se atracam botes”, ele se lembra de "Os Lusíadas". Explica Moisés sobre tal “lirismo realista”: “A primeira observação que desperta em nós diz respeito ao fato de encerrar um lirismo não amoroso, não panfletário, não metafísico. Lirismo de repórter, mas de repórter atraído pela cidade, sensível às suas pulsações, inclusive as nauseantes, disformes ou repugnantes. Ou, por outra, lirismo realista, porém não fotográfico nem frio: o poeta emociona-se, e muito, e é a emoção perante o real cotidiano que procura transmitir ao leitor” (MOISÉS 2012: 436).


A segunda parte, “Noite Fechada”, amplia os sentimentos negativos no poeta, que agora, enquanto continua a descrever a cidade, fala em estar “mortificado”, em se sentir “emparedado”. As onze estrofes dessa parte descrevem nominalmente: grades de cadeia, Sé (a Igreja de Santa Maria Maior, no Largo da Sé), tascas, cafés, tendas, igrejas num largo, “construções iguais, retas”, palácio, casebre, arcos dos quartéis, lampiões, magasins (armazéns), brasseries, passeio público. Agora, com o fim da tarde e a chegada da noite, as visões da cidade lhe causam impactos ainda mais potentes. O som das grades nas cadeias “mortifica e deixa umas loucuras mansas”; o seu coração “se abisma” ao ver a “velha Sé”; “Duas igrejas num saudoso largo” lançam “a nódoa negra e fúnebre do clero”. Nessa parte, detalhes arquitetônicos de Lisboa agora são percebidos atentamente pelo eu-lírico, que responde especificamente a tais detalhes. Ele se sente murado por “construções retas, iguais, crescidas”, ele reage com desprezo pelos “arcos dos quartéis que foram já conventos”. Já na terceira parte, “Ao Gás”, o poeta deixa claro logo no primeiro verso que a “noite pesa, esmaga”. Está mais explícito, agora, como o eu lírico desaprova o que vê na cidade. Ele cita: passeios de lajedo, hospitais, lojas, catedral, canos, padaria, confecções de roupas, vitrines, balcões de mogno, mostradores, candelabros, ladeiras, esquinas. Nos “passeios de lajedo” só andam as “impuras”; as lojas lhe cercam; o chão está aberto, “minado pelos canos” das reformas e modernizações; na esquina ele vê um homem pedindo esmola, seu antigo professor de Latim, exemplificando como ele enxerga que tal panorama citadino prova valores invertidos na contemporânea sociedade portuguesa. É uma visão rebaixadora e degradante de Lisboa.

Por fim, na quarta parte, “Horas Mortas”, a descrição detalhada da cidade diminui de ritmo para dar lugar a mais momentos de reflexão íntima. As “horas mortas” do título, ironicamente, refletem sobre o momento de vida do poeta, a passagem do tempo, e também sobre o próprio tempo em Portugal: o que o país era antes, em tempos mais gloriosos, e o que é em 1880. Em quatro estrofes de alto teor lírico, o poeta se refugia, por certo momento, em sua mente, revelando pensamentos íntimos. Primeiro, uma ânsia pelo pastoril, em contraponto às casas (“E eu sigo como as linhas de uma pauta / A dupla correnteza augusta das fachadas”). Depois, revelando desejos descritos em visões imaginadas: primeiro, desejos de um lar (“Que aninhem em mansões de vidro transparente!”); depois, de uma família (“Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis, / Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!”); por fim, sonhos nostálgicos (“Nós vamos explorar todos os continentes / E pelas vastidões aquáticas seguir!”). Nessa parte, o poeta cita como visões realistas: trapeiras, lajes, portões, corredores, tabernas, escadas, sacadas, prédios e fachadas de casas. Moisés analisa como se fundem poeta e mundo nesse poema, em uma fusão que começa tímida na primeira parte e se consuma totalmente na quarta: “[...] pela primeira vez se inverte a relação Poeta X Mundo: seu ‘realismo’, ou algo que assim se denomine, é só fotográfico na aparência, o que colidia, em princípio, com a poesia voluntariamente revolucionária dos homens de 70. Ao invés de retratar o objeto exterior, para o qual se volta sempre, o poeta identifica-o com o que lhe vai na sensibilidade e na consciência poética, isto é, com o seu mundo interior. A realidade objetiva funde-se, portanto, com a realidade subjetiva, de molde a formar uma unidade que anula as diferenças de plano visual ou de colocação do indivíduo diante das coisas” (MOISÉS 2013: 243).


A descrição da paisagem urbana não vem sem crítica por parte de Cesário Verde, que ao longo do poema liga o urbano aos seus estados mentais: do sofrimento ao passadismo, passando pelo desejo de fuga. O poeta enxerga miséria e graves problemas naquela nova cidade que se ergue aos seus olhos. Ele sente os problemas do tempo acelerado no espaço urbano em construção, assim como sentem outras vítimas da urbanização (o trabalhador do campo fugindo da miséria agora ganha tão pouco quanto, dessa vez na cidade). A modernidade de Lisboa, se comparada a de Paris ou Londres, é incompleta. Os novos tempos, expressados naquele espaço de fábricas, lojas e agitação da vida pública, trazem problemas: a mendicância agrava-se, as tabernas se multiplicam, a mão de obra infantil é escandalosa, surge uma superpopulação sem saneamento básico e sem habitação adequada, doenças se alastram, como cólera, tifo, pneumonia e tuberculose (PASCHOALIN 1982: 94). O poeta, em outros poemas e em "O Sentimento Dum Ocidental", sem ser panfletário, aponta para tais problemas que se infiltram pelos espaços urbanos que tanto descreve. Diz Maria Aparecida Paschoalin: “Cesário, sem atuação doutrinária, participa -- com sua poesia inquestionavelmente nova -- da literatura realista, quer pelo realismo materialista, pela documentação poética do cotidiano, quer pela apresentação de quadros humanos deploráveis. Contrapondo-se à poesia filosófica de Antero de Quental, Cesário é o autor da geração realista que introduz na poesia o tom coloquial urbano, despreza o que é convencional e documenta com lirismo todo um período em que a noção de progresso se associa à noção de decadência humana” (PASCHOALIN 1982: 96).


Ao longo do poema, o eu lírico explicita essas críticas surgidas a partir das edificações e elementos urbanos que descreve. Como apontam Júnior e Paschoalin, o trabalho de Cesário Verde “registra as tensões sociais do processo de urbanização em Portugal” (JÚNIOR e PASCHOALIN 1990: 114). Na primeira parte, o poeta menciona que os “edifícios, com as chaminés, e a turba / Toldam-se duma cor monótona e londrina”. Adiante, o poeta sonha com cidades melhores (Madrid, Paris, Berlim) ao ver os carros de aluguel “Levando à via-férrea os que se vão” (“Felizes!”). Também, o poeta menciona que “o peixe podre gera os focos de infecção”. Na segunda parte, numa praça onde está o busto de Camões há “bancos de namoro”, num “recinto público e vulgar”. Ele também diz que se pode imaginar a Febre e a Cólera diante de tal acúmulo de pessoas (“Nesta acumulação de corpos enfezados”). Na quarta parte, ele compara a vida da cidade com o campo: ali, “sem árvores”, todos estão “emparedados”. O poema termina com a cidade descrita como enorme “massa irregular / De prédios sepulcrais”. Há certa descrença na modernidade portuguesa, se comparado às potências europeias da época. Diz Rogério Caetano de Almeida: “Esse niilismo se caracteriza por uma análise comparativa entre o passado histórico glorioso e a formação da moderna cidade de Lisboa que, em um primeiro momento, mostra-se como cópia de outras grandes cidades europeias. Contudo, no final, impregnada pela descrença do eu lírico que a analisa, temos uma imagem de uma cidade moderna que é a representação de uma civilização que deixou de ter importância histórica [...]” (ALMEIDA 2011: 88). Nesse sentido, aparecem nostalgia e melancolia (esta citada já na primeira estrofe do poema) por parte do poeta. Explicam França e Fernandes: “A nostalgia deve ser entendida como uma vontade de viver o passado concreto, a promessa de grandiosidade do império português, que realmente existiu, enquanto a melancolia é uma condição mítica e mental, em que a perda é abstrata, ou seja, trata-se de um luto gerado pela glória de um império que era para ter sido e que não foi” (FRANÇA e FERNANDES 2018: 113).


A descrição impressionista e realista das ruas de Lisboa no poema extrapola o âmbito do Realismo português para prenunciar traços do que se configuraria como o Modernismo. Cesário Verde adota uma postura lírica diante do que seus sentidos captam, mesclando realidade exterior e sensibilidade interior. Mesmo que descreva ruas, becos, igrejas, edificações e postes, o poeta pinta um quadro não frio e petrificado, mas quente, dinâmico e transitório: não só o tempo e as luzes (tarde, Lua, lamparinas) agem sobre essa arquitetura, como também o espírito do próprio eu-lírico. Com uma técnica de sobreposição, ele revela simultaneamente cenas, fatos e sentimentos. O legado do poeta foi grande. Se pouco foi lido em vida, grandes nomes da literatura portuguesa beberiam de sua fonte: “‘Comédia humana’ poética de uma cidade sombria e triste (a Lisboa dos fins do século 19), ‘O Sentimento dum Ocidental’ denuncia, em Cesário Verde, um lírico insatisfeito, visionário de espaços e belezas, que viriam a ser conhecidos de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro, que, dessa forma, podem ser considerados discípulos ou continuadores” (MOISÉS 2012: 437).


Ao descrever cronicamente as transformações da Lisboa de 1880 sob a ótica impressionista, o poema de Verde mostrou que seus procedimentos, abandonando de vez o Romantismo, não só eram realistas como dialogavam com Charles Baudelaire (1821-1867) e o nascimento do pensamento moderno. Luciana Marino do Nascimento analisa, a partir da produção do poeta francês, que “Cesário Verde sintoniza a poesia portuguesa com a modernidade europeia e rompe com a tradição, não por somente absorver a Paris de Baudelaire, (o boulevard, a dama fria e distante), mas por usar esses elementos como lente rearticuladora do perfil português e de uma nova convenção poética” (NASCIMENTO 2003: 25). Massaud Moisés analisa que o poeta “trazendo a subjetivização quase alucinada do mundo concreto, introduz matizes insuspeitos na poesia portuguesa, e, através dum impressionismo policromado e dum cotidianismo a-sentimental e a-declamatório, irá projetar-se para a frente, como precursor da poesia moderna” (MOISÉS 1978: 128). Assim, “sua poesia, ao mesmo tempo que comprometida com vagas notas do ambiente de inconformismo peculiar à década de 70, teve o privilégio de realizar a abertura de janelas para paisagens até à época apenas pressentidas” (MOISÉS 1978: 180). Paschoalin sintetiza que sua modernidade “caracteriza-se pela capacidade de recriar, poeticamente, a realidade a partir de verdades simples” (PASCHOALIN 1982: 98).


NOTAS


1. Sobre a pintura impressionista: https://www.tate.org.uk/art/art-terms/i/impressionism

2. Apesar de falar em “carros” em 1880, não se pode confundir com o carro motorizado, criado somente em 1886 e trazido a Portugal de Paris somente em 1895, pelo conde Jorge de Avilez.


REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Rogério Caetano de. Uma releitura da história na cidade: mal estar em “Sentimento Dum Ocidental”. São Paulo: Revista Desassossego, 3(5), 81-89, junho de 2011.


ANTONIO, Jorge Luiz. Cores, forma, luz, movimento: a poesia de Cesário Verde. São Paulo: Musa Editora/Fapesp, 2002.


FRANÇA, Flávio. FERNANDES, Alessandra L. B. G. Cesário Verde: lusismo, intertextualidade e saudade. UEFS, Bahia: Revista Navegações, v.12, n.1, 112-121, janeiro/junho de 2018.


JÚNIOR, Benjamin Abdala e PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática, 1990 (3ª edição).


MACEDO, Helder. Nós: Uma Leitura de Cesário Verde. Queluz de Baixo: Editorial Presença, 1999.


MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2013.


MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2012 (33ª edição). Edição ebook, 2019.


MOISÉS, Massaud. Presença da literatura portuguesa - v.3: Romantismo-Realismo. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1978 (5ª edição).


NASCIMENTO, Luciana Marino do. Entre Paris e Lisboa: a modernidade de Cesário Verde. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2003. Tese de Doutorado.


PASCHOALIN, Maria Aparecida. Literatura Comentada: Cesário Verde. São Paulo: Abril Educação, 1982.


SARAIVA, António José e LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, Limitada, 1975 (8ª edição).


SILVA, Lino Moreira da. Elementos poético-narrativos e manifestações da consciência, em O Sentimento Dum Ocidental, de Cesário Verde. Minho: 1º Encontro Leituras em Português, Universidade do Minho, 122-140, 2005.


 

Citação: DEARO, Guilherme. "Impressões realistas da cidade por Cesário Verde: análise das descrições de Lisboa em O Sentimento Dum Ocidental". São Paulo: FFLCH/USP, dezembro de 2020.


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