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Imre Kertész sobre terror, autoritarismo, vida, liberdade e escrita

  • Guilherme Dearo
  • 25 de fev.
  • 5 min de leitura

O escritor húngaro, Nobel da Literatura de 2002, explora o Holocausto, os regimes autoritários, a linguagem, a escrita e a busca dos seres humanos por liberdade e sentido em uma compilação de ensaios, falas e conferências em "A Língua Exilada"



O escritor húngaro Imre Kertész (Budapeste, 1929-2016) viu de perto o horror do Holocausto. Aos 14 anos, em 1944, foi deportado junto de outros judeus húngaros para o campo de concentração de Auschwitz, depois para o campo de Buchenwald. Lá, mentiu sua idade, dizendo ter 16 anos. Assim, foi colocado no grupo de trabalhos forçados, o que poderia garantir alguns meses de sobrevivência. Tivesse falado que era mais novo, teria sido mandado para o pelotão de crianças, jovens, idosos e pessoas doentes, que eram imediatamente mortos nas câmaras de gás.


Kertész sobreviveu ao horror nazista para se tornar jornalista, tradutor e escritor. Em 2002, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro húngaro a conquistar o feito. Ao longo da carreira, seus livros de ficção e seus ensaios falaram, principalmente, do Holocausto - e, a partir dele, de questões como autoritarismo e liberdade. Kertész foi um grande crítico, por exemplo, da ditadura stalinista. Em 1956, o regime soviético esmagou a Revolução Húngara, movimento popular que queria derrubar o regime comunista no país. O escritor não poupou críticas à falta de liberdade individual da Hungria pós-Segunda Guerra.


O livro "A Língua Exilada" compila uma série de ensaios, falas e conferências de Kertész ao longo das décadas, inclusive seu discurso em Estocolmo quando recebeu o Nobel. Em textos como "O infeliz século XX", "A perpetuação dos campos", "O intelectual inútil" e "A língua exilada", o escritor prova sua defesa apaixonada e ferrenha pela dignidade e liberdade do ser - violentado em um mundo de terror, autoritarismo e controle. Sem perder as esperanças, mesmo diante do horror do Holocausto - que, para ele, representava um acontecimento universal, não dizendo respeito somente aos judeus -, ele mostra os caminhos possíveis para a arte, a escrita e a liberdade.


A seguir, algumas das ideias de Kertész:


I. Se o mundo é uma realidade objetiva independente de nós, os humanos — mesmo para si próprios — não passam de objetos, e suas histórias de vida compõem uma mera série de acidentes históricos desconexos, da qual eles podem se maravilhar mas com a qual não têm identificação alguma.


II. O que descobri no Holocausto foi a condição humana, o ponto final de uma grande aventura a que o homem europeu chegou depois de sua história moral e cultural de dois mil anos.


III. Simplesmente não temos a capacidade, a coragem e o desejo de encarar a realidade brutal de que as profundezas da existência a que chegou a deterioração do homem em nosso século.


IV. Horroriza-me a facilidade com que os regimes de poder totalitário liquidam as individualidades autônomas e como o homem se transforma numa peça criadora obediente, perfeitamente ajustada, de um mecanismo dinâmico.


V. Ninguém traça os limites, de modo que a própria democracia se tornou tão flexível, “democratizou-se” tanto, que nela tudo cabe e, aos menores sinais de crise, ela reage com os sintomas da histeria de massa e da loucura política, como o doente paranóico dos tempos antigos, que já não é capaz de dar respostas racionais nem às demandas mais simples de seu meio.


VI. Talvez estejamos na situação que o maior conhecedor da alma da nossa época, Franz Kafka, assim formulou: nossa tarefa é acabar com a negatividade; o que era positivo já se rendeu.


VII. É possível que o desígnio terreno do homem seja exterminar a Terra, a vida. Nesse caso, entretanto, comportou-se como Sísifo: durante algum tempo escapou do desígnio, da tarefa, fugiu das garras da morte, e maravilhou-se daquilo que tinha de exterminar: a vida. Desse ponto de vista, toda produção e pensamentos superiores criados pelo homem existem graças a essa relutância; a arte, a filosofia, as religiões resultam da hesitação, da imobilidade diante da tarefa real, o extermínio; essa hesitação explica a tristeza incurável, nostálgica, dos verdadeiramente grandes.


VIII. Estou convencido de que a desvalorização da vida, a decadência existencial veloz, exterminadora, da nossa era é causada pelo profundo desespero cuja raiz se oculta nas experiências históricas destruidoras e no saber catártico que delas se origina. (...) enquanto causa sofrimento e dor imensos e incompreensíveis a si mesmo e a outros, o homem do nosso tempo imagina que encontrará o valor único e verdadeiramente indiscutível na vida livre de sofrimento. Porém, a vida livre de sofrimento também se libertou da realidade, de modo que podemos perguntar, com Hermann Broch: “Existe ainda realidade nessa vida distorcida?”.


IX. O homem não nasce para desaparecer na história como peça descartável, mas para compreender seu destino, para confrontar-se com sua mortalidade e — ouvirão agora uma expressão bem antiquada — para salvar sua alma. A felicidade no sentido mais elevado esconde-se fora da realidade da história — não na evitação das experiências da história, mas, ao contrário, na vivência delas, na sua apropriação e na identificação trágica que demandam. Somente a sabedoria pode alçar o homem acima da história; no tempo da história totalizadora, que desencoraja, que liquida toda esperança, a sabedoria é o único refúgio respeitável, a sabedoria é o único bem.


X. Entretanto, tenho certeza de uma coisa: a civilização que não declara seus valores com clareza ou despreza os valores conhecidos caminha para a extinção, para a derrocada definitiva. E outros expressarão esses valores, e na boca desses outros eles não serão mais valores, mas álibis para o poder sem limites, para o extermínio sem limites.


XI. (...) enquanto o homem sonhar — coisas boas ou ruins —, enquanto o homem tiver histórias sobre as origens, lendas universais, mitos, haverá literatura, a despeito do que e do quanto falem da sua crise. A verdadeira crise é o completo esquecimento, a noite sem sonhos: a isso, porém, ainda não chegamos.


XII. Nisso, porém, há uma armadilha: os poetas nem sempre sabem como se deve viver, mas, por outro lado, quase sempre sabem como se deve morrer.


XIII. O que pode fazer neste ponto o escritor? Escrever e procurar não se importar com a utilidade da obra. É natural que ele se encontre num profundo conflito com o país que o rodeia. Mas pode ser diferente? O lugar acanhado onde passamos nossos dias não é um símbolo de todos os lugares, do mundo, da própria vida?


XIV. A arte, depressa aprendi, não serve para julgar os homens, mas para recriar o instante.


XV. (...) valor do sujeito tornou-se discutível, e não só se tornou discutível como o próprio indivíduo passou a duvidar do único valor que recebeu ao nascer: o de ser um indivíduo.


XVI. Atiramo-nos à escrita repetidas vezes e não somos capazes de nos livrar do sentimento de vazio. Primeiro acreditamos que a falha está na matéria-prima, depois logo descobrimos que a falha tem de ser encontrada em nós mesmos: vemos as coisas de uma perspectiva falsa, que impõe o auto-exame. Pouco a pouco reconhecemos que — valendo-me da expressão dos psicólogos — pensamos sob um imperativo que em grande parte vem de fora. Reconhecemos que estamos num mundo ideológico. E o desejo das formas claras impele-nos a sair do mundo que, sem cessar, só reflete a própria perspectiva, para de novo nos depararmos com a Terra, o firmamento e o destino humano.


XVII. Os valores são falsos, os conceitos, inapreensíveis, a existência, arbitrária, a sustentação, dependente de relações de poder incompreensíveis que, embora comandem inteiramente a vida, não contêm nada de vivo. Na verdade, o totalitarismo ideológico desfere o mais violento golpe sobre a energia criativa, e, por outro lado, é precisamente à luz da energia criativa que mais se revela seu caráter impotente.


XVIII. Quem pode ser julgado somente por querer viver?


XIX. E, se hoje me perguntam o que me mantém ainda na Terra, o que ainda me mantém vivo, respondo sem rodeios: o amor.


Imre Kertész. A Língua Exilada. Companhia das Letras, 2004. Trad. Paulo Schiller.

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