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Karl Ove Knausgård sobre vida e escrita no fim da saga Min Kamp

Guilherme Dearo

Em "Minha Luta 6 - O Fim", o escritor norueguês faz um balanço sobre vida, tempo, memória, escrita e o que significou revirar suas lembranças por seis volumes e 3.600 páginas




I. Talvez fosse essa a maior dificuldade ao escrever textos autobiográficos, encontrar a relevância do material. Afinal, na vida tudo era relevante, em princípio tudo era igualmente valioso, porque tudo existia, e existia ao mesmo tempo.


II. E escrever era uma atividade tão frágil! Não era difícil escrever bem, mas era difícil fazer com que a escrita se movimentasse, fazer com que desenvolvesse um movimento único e coeso, capaz de revelar e abarcar o mundo ao mesmo tempo.


III. (...) última coisa que eu queria era embelezar a linguagem, e numa descrição da realidade, e em especial da realidade que eu tinha pensado em descrever, esse seria um procedimento mentiroso. A beleza é um problema porque sugere uma forma de esperança. A beleza, ou seja, a linguagem literária, o filtro através do qual o mundo é visto, confere esperança à desesperança, valor àquilo que não tem valor, sentido àquilo que não tem sentido. É inevitavelmente assim. A solidão, quando descrita em termos belos, eleva a alma a grandes alturas.


IV. (...) eu comecei com uma página em branco e a vontade de escrever e acabei com aquele romance específico. Nisso há uma crença praticamente cega na intuição, que tanto pode levar a uma poética como a uma ontologia, segundo me parece, uma vez que para mim o romance consiste em uma forma de pensar radicalmente distinta do ensaio, do artigo e da tese, porque no romance a reflexão não é um meio superordenado de chegar à apreensão, mas encontra-se no mesmo nível de todos os demais elementos. O espaço dentro do qual se pensa é tão importante quanto o pensamento.


V. Mas para mim a questão é saber por que mantemos escondido aquilo que mantemos escondido. Que vergonha há nessa queda? Na catástrofe humana total? Viver a catástrofe humana total é terrível, mas falar a respeito? Por que a vergonha e o segredo em relação a isso, que no fundo talvez seja o que existe de mais humano? O que poderia ser tão perigoso a ponto de não podermos discutir em voz alta?


VI. Essas duas premissas da literatura — por um lado ter de ser tão individual quanto possível, ou seja, ter de expressar a própria inimitabilidade do eu, e por outro lado ter de se manter dentro dos limites daquilo que é comum, ou seja, também expressar o “nós” — entram em contradição uma com a outra, pois quanto mais único é um eu, mais distante se encontra do “nós”.


VII. O eu da literatura assemelha-se ao eu da realidade no sentido de que o que há de único no indivíduo pode ser expresso somente através daquilo que é comum para todos, que no caso da literatura é a linguagem. Todos os eus literários usam as mesmas palavras: a única diferença, aquilo que diferencia um eu literário do outro, é a maneira como as palavras são ordenadas


VIII. Quando escrevemos, perdemos o controle sobre o eu, que se torna imprevisível, e a questão passa a ser se o incontrolável e o imprevisível no próprio eu não seriam no fundo uma representação de sua condição factual, ou pelo menos o mais próximo que podemos chegar de uma representação factual do eu. O que dizemos quando dizemos eu?


IX. Enquanto Dante escreve sobre o inferno onde as pessoas estão, o épico dele é vivo; assim que avança rumo ao céu e começa a descrever o divino, no entanto, a obra morre em seus braços. A música pode expressar essas coisas, e a pintura pode expressar essas coisas, porque têm uma forma desprovida de palavras, a linguagem delas é outra, sem nome, tão pouco relacionada ao eu que a usa e ao eu que a concebe como os números em uma equação matemática. Ler um romance depois de ouvir as sonatas para violoncelo de Bach é como virar as costas ao pôr do sol e descer a um porão. O romance é a forma da vida pequena, e quando não é assim o romance está mentindo e não é um romance de verdade, porque não existe um eu que não seja também pequeno. A única forma literária capaz de transcender essa limitação é a poesia.


  • Um pouco mais da série Minha Luta aqui. Algumas reflexões de Knausgård em "Inadvertent" aqui.


Karl Ove Knausgård. Minha Luta 6 - O Fim. Companhia das Letras, 2020. Trad. Guilherme da Silva Braga.

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