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  • Guilherme Dearo

Medianamente inteligentes, medianamente maus

Atualizado: 28 de jun.

Ou "Uma massa de inválidos em torno de um núcleo de perversos"


No livro "Os Afogados e os Sobreviventes", de 1986, Primo Levi reflete sobre questões do Holocausto quarenta anos depois do Crime. Ele retoma pontos cruciais debatidos por ele em outros escritos no passar dos anos: a culpa coletiva alemã, o sentimento de culpa que os sobreviventes sentiam (sim, as vítimas sempre sentem culpa), os suicídios, as perguntas cada vez menos ingênuas e cada vez mais acusativas do tipo "Mas por que vocês não fugiram?"; e, o mais importante, a preocupação com a memória e a recorrência: poderia acontecer de novo?, as pessoas vão, um dia, esquecer?, negar?


Nesse livro, falando sobre "É Isto Um Homem?", seu livro de maior sucesso, o primeiro de grande potência histórica e literária a revelar ao mundo imediato do pós-guerra o que fora Auschwitz e a máquina de matar alemã, escrito em 1947 (lançado em pequena tiragem), mas que só atingiu o público leitor massivamente numa segunda edição, em 1957, Levi conta que entendeu que, para a edição alemã, pela primeira vez enviaria a mensagem justamente àqueles que tanto precisavam ouvi-la. Não eram os inocentes. Eram "aqueles" mesmo. Os que tinham participado. Eles leriam.


Sobre eles, diz: "Quase todos, mas não todos, tinham sido surdos, cegos e mudos: uma massa de 'inválidos' em torno de um núcleo de perversos. Quase todos, mas não todos, tinham sido covardes".


Levi se recusou a escrever um prefácio moralista e acusatório para a edição: o livro já falava por si. Mas deixou que os editores incluíssem mensagens trocadas com seu tradutor. Disse na sua carta final: "Estou vivo, e gostaria de compreendê-los para julgá-los".


Ele recebeu dezenas de cartas de alemães após a publicação do livro. De adultos que viveram conscientemente covardes os anos de Holocausto, fingiram não saber de nada, até de jovens que, crianças ou mal nascidos naqueles anos, nada tinham de culpa, mas ainda assim tinham algo a dizer.


Levi destaca no capítulo final de "Os Afogados e os Sobreviventes" uma carta de 1962 de T.H., um doutor de Hamburgo. Este pede desculpas, desculpas cheias de "mas". Ele tenta justificar, tirar o peso e a vergonha que carrega (Levi divide os alemães em dois grupos: aqueles que, por vergonha, se calam, e aqueles que tentam pedir desculpas).


O que T.H. diz é bem curioso: "Mas o senhor espera decerto uma resposta específica à pergunta sobre por que Hitler chegou ao poder e por que nós, em seguida, não derrubamos seu jugo. Ora, em 1933 (...), todos os partidos moderados desapareceram, e só restou a escolha entre Hitler e Stalin, nacional-socialistas e comunistas”.


Este trecho é crucial: "Hitler nos parecia suspeito, é verdade, mas surgia decididamente como o mal menor. No início não nos demos conta de que todas as suas belas palavras fossem mentira e traição". Mal menor.


T.H. vai aos limites do patético e diz que a Alemanha tratava muito bem os judeus e que Hitler nunca dera sinais de que atacaria os judeus. Mas termina com algo que, sim, talvez seja verdade, se se quer viver: "Rebelar-se num Estado totalitário não é possível".


Levi derruba com argumentos todas as falácias de T.H. e sentencia: "(...) nenhuma Igreja tem indulgência em relação a quem segue o Diabo, nem admite como justificação atribuir ao Diabo as próprias culpas".


Crucial: "Quem votara nele certamente votara em suas ideias".


O que lembram as justificativas, até as escolhas de palavras, desse culpado senhor T.H. de Hamburgo?


É preciso repetir Levi sempre: "Estou vivo, e gostaria de compreendê-los para julgá-los". Pois os "outros" não eram monstros, "eram feitos de nossa mesma matéria, eram seres humanos médios, medianamente inteligentes, medianamente maus".



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