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  • Guilherme Dearo

Memória, identidade e reinvenção em Angélica Freitas

Atualizado: 28 de jun.

Uma breve análise de Rilke Shake, poemas de Angélica Freitas



a mina de ouro de minha mãe & de minha tia

se chamava

ilha da feitoria

ou ilha do meio

onde as duas vendiam

cosméticos avon

chegavam de bote

motorizado

com fardos de produtos

batons rímeis perfumes

e sobretudo rouges

eram recebidas

pelas donas de casa

cabeludas

bigodudas

panos de prato no ombro

filhos ranhentos no colo

minha mãe & minha tia procediam

ao embelezamento das nativas

devolviam-lhes cores

às faces

todo o espectro de cores

de um céu de fim de tarde

na lagoa dos patos

azuis e roxos e laranjas e rosas

e depois lhes emprestavam

espelhos

as donas de casa da ilha do meio

compravam muita maquiagem

minha mãe & minha tia

enchiam sacos de dinheiro [1]


O poema “a mina de ouro de minha mãe & de minha tia” está em "Rilke Shake", de 2007, livro de estreia da poeta Angélica Freitas (1973). O título se aproveita de uma similaridade sonora e faz um trocadilho entre a expressão inglesa milk shake e o nome do poeta checo de expressão alemã Rainer Maria Rilke (1875-1926). Publicado dentro da coleção “Ás de Colete”, uma parceria das editoras Cosac Naify e 7Letras, Rilke Shake integrou a “série bolso” da coleção, focada em poetas brasileiros contemporâneos, como Fabiano Calixto, Ricardo Domeneck, Marília Garcia e Age de Carvalho.


De tom pessoal, evidenciado na relação com os demais poemas do livro, o poema narrativo-descritivo conta um episódio prosaico, que se entende corriqueiro, da vida de duas mulheres, uma mãe e uma tia. Admitindo que o eu-lírico do poema é a própria poeta – Angélica Freitas não esconde a pessoalidade e o tom confessional em diversos momentos da obra –, ela se propõe a descrever naqueles versos uma história do passado de sua família. Sua mãe e sua tia vendiam cosméticos da marca Avon na Ilha da Feitoria, pequena ilha na Lagoa dos Patos, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Justamente, Pelotas é o local de nascimento da poeta. Essas irmãs tiravam o sustento para suas famílias do comércio com essas mulheres “nativas”, apartadas, acessíveis somente com o uso de um “bote motorizado”. Imaginamos que a poeta escutou a história de sua própria mãe ou tia, ou talvez da boca de outro parente, e encontra pedaços de um passado que não acompanhou de perto. Em 2019, a Ilha da Feitoria está praticamente sem ocupação humana. [2] Ela recupera no poema, pela rememoração, a vida de um microcosmo nos anos 1970 ou 1980 que não existe mais.


O poema é composto por trinta versos livres, unidos em uma única estrofe. Há desde versos dissílabos (“às faces”) até versos hendecassílabos (“azuis e roxos e laranjas e rosas”). Também aparecem versos de três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e dez sílabas poéticas. Como em todo "Rilke Shake", a poeta só usa letras minúsculas, o que resulta em certa “limpeza visual e gráfica” [3]. Com metros livres, sem divisão em estrofes, sem um esquema regular de rimas e sem sinais de pontuação, o ritmo do poema se constitui a partir das pausas mentais inseridas automaticamente na leitura das construções sintáticas e das quebras de versos: “se chamava / ilha da feitoria / ou ilha do meio / onde as duas vendiam / cosméticos avon” – fazemos uma pausa aqui, um ponto final. Continuamos: “chegavam de bote / motorizado / com fardos de produtos / batons rímeis perfumes / e sobretudo rouges” – fazemos a segunda pausa, para logo prosseguir para “eram recebidas / pelas donas de casa” etc.


Mesmo com essas pequenas pausas sintáticas, lemos o poema como breves sentenças, em um grande fluxo ligeiro incensado pelos versos curtos: “eram recebidas / pelas donas de casa / cabeludas / bigodudas”. Mas Angélica não quer que nos atropelemos: sonoridades marcantes e repetições criam um ritmo que sinalizam o ritmo da leitura. Do título, extraímos “de minha mãe & de minha tia” (a tal “mina de ouro” será entendida até o último verso), expressão que é repetida outras duas vezes ao longo do poema. A repetição é afetuosa e marca a centralidade das duas personagens. O uso do “&” em vez do “e” traça uma ligação única entre elas. Nas lembranças sobre a ilha, a memória de Angélica Freitas trabalha com a inter-relação da identidade de ambas. A afetividade reside nessa dinâmica de irmãs. A repetição aparece também em “ilha do meio”, que surge duas vezes no poema, nos versos 3 e 27. Além disso, aparece como uma substituição metonímica em “na lagoa dos patos” (verso 23). Assim como “minha mãe & minha tia”, a repetição nos versos finais dessa expressão marca um ritmo pendular: ligamos o começo do poema ao seu fim, ganhando uma sensação de conclusão narrativa. Como na tradição oral, onde um bom prosador nos contaria um “causo”, a repetição inicial e final fecha um ciclo e marca na memória o que se acabou de ouvir, é um recurso de pujança. Na origem da poesia, entre os povos primitivos, está a repetição, pois “a eficácia das fórmulas de encantação não reside apenas no poder mágico das palavras moduladas, mas sobretudo na repetição”.[4]


A estrutura rítmica do poema também se constrói pelas rimas finais, ainda que sem nenhum padrão clássico. “ilha da feitoria” (verso 2) vai se ligar a “minha mãe & minha tia” (verso 29); “eram recebidas”, “cabeludas” e “bigodudas” (versos 11, 13 e 14); “devolviam-lhes cores / às faces / todo o espectro de cores” (versos 19 a 21); “onde as duas vendiam”, “(...) procediam” e “e depois lhes emprestavam” (versos 4, 17 e 25). Nos versos 15 e 16, a assonância do “o” marca a leitura: “panos de prato no ombro / filhos ranhentos no colo”, com a vogal posterior arredondada emprestando certo sentido de clausura e imutabilidade. Os quatro versos finais ganham sonoridade especial com a repetição do ditongo “ei” em duas palavras de final de verso: “as donas de casa da ilha do meio / comprovam muita maquiagem / minha mãe & minha tia / enchiam sacos de dinheiro”. Terminamos a leitura com certo sentimento de completude, pois encontramos, como na música, uma satisfação rítmica, pois poesia é ritmo. [5]


O poema apresenta um tom informal – tom permanente de "Rilke Shake". Não há palavras elevadas: “cabeludas”, “bigodudas”, “ranhentos”, “sacos de dinheiro” acompanham a história prosaica. É apenas mais um dia de trabalho. Não há luxo entre as donas de casa da Ilha da Feitoria, que recebem as irmãs com “panos de prato no ombro”. Nesse ponto, Angélica presta um tributo às “mulheres normais”, há nas entrelinhas um discurso feminista apontando para as mulheres de classe média e baixa que trabalham e cuidam dos filhos, sem descanso e sem os luxos das revistas de moda. Isso não exclui, necessariamente, o gosto pela maquiagem e a vaidade. Não à toa, elas “compravam muita maquiagem” e se olhavam nos espelhos emprestados pela mãe e pela tia.


Diante de uma narrativa banal e de uma escolha vocabular corriqueira, o poema ganha contornos populares e se vale do bom humor – estratégia que permeia o livro –, acompanhado de muitos momentos irônicos. Afinal, os versos finais mostram que “minha mãe & minha tia / enchiam sacos de dinheiro”. Não se arremata a história com versos moralizantes ou sentimentais. O desfecho é comum e quebra qualquer expectativa de uma profundidade explícita. A beleza da memória de Angélica se dá ao, sensivelmente, imaginar as duas mulheres em seu ritual (semanal, mensal?) de revender os produtos da marca Avon – a marca aparece como metonímia do tipo “marca pelo produto” em “onde as duas vendiam / cosméticos avon”. Pela dicção popular e pela narração de uma história corriqueira, o poema foge do gênero lírico absoluto, onde a poesia seria puramente subjetiva e expressaria os pensamentos e emoções imediatos do autor, e incorpora elementos do gênero épico, narrativo e mais objetivo. [6]


As imagens do poema, por sua vez, não se constroem a partir de grandes abstrações, criando assim uma leveza que contribui para o tom informal dos versos. Com exceção de três momentos, não há metáforas e todas as palavras do poema são usadas em seus sentidos denotativos. Os vocábulos denotam o que significariam em uma conversa ordinária, longe do registro poético. “ilha”, “mãe”, “tia”, “bote”, “espelhos” carregam seus significados usuais. Seus sentidos, entretanto, remetem à memória afetiva da poeta e à nossa própria memória: da poeta, sentimos vir a beleza daquela recordação de família, preciosa – fica evidente que, para ela, contar a história do trabalho de sua mãe e de sua tia e imaginá-las indo para uma ilha em um bote e batendo de porta em porta se liga a conceitos como “infância”, “inocência”, “amor”; para nós, nos ser contada uma história desse tipo causa a reação de buscar as relíquias narrativas de nossa própria família, em tempos mais simples e lentos. Tal poesia, com uma linguagem próxima do cotidiano e mais distante da poesia lírica tradicional, se revela como fenômeno da contemporaneidade, pois, essa “antipoesia”, produto da Segunda Guerra Mundial, “surgiu de uma aguda desconfiança de todos os recursos com os quais a poesia lírica mantivera sua autonomia (...). (...) não bastava que a poesia fosse tão bem escrita quanto a prosa. Ela deveria também ser capaz de comunicar de maneira tão direta quanto a prosa, sem recorrer a uma linguagem especial (...)” [7].


Quanto aos três momentos onde há imagens poéticas, o primeiro se dá quando, citando que sua mãe e sua tia às mulheres “devolviam-lhes cores / às faces / todo o espectro de cores”, Angélica compara o espectro ao entardecer na ilha “de um céu de fim de tarde” – somos levados a unir o espetáculo das cores do entardecer no céu grandioso, “azuis e roxos e laranjas e rosas”, às cores daquelas faces humildes e maquiadas. O segundo momento, mais simples, é a expressão popular em “enchiam sacos de dinheiro” (verso 30): certamente elas não guardavam o dinheiro em imensos sacos, mas a expressão, dita popularmente, traz a conotação de muito dinheiro, bonança, fartura. O terceiro momento se dá em “minha mãe & minha tia procediam / ao embelezamento das nativas” onde “nativas” é usado com sentido irônico, como se aquelas mulheres, isoladas na ilha, pertencessem a outra civilização – e mãe e tia fossem desbravadoras, aventureiras, antropólogas que se dirigem ao contato excitante com os autóctones.


Este poema ocupa uma posição central no livro. Entre 45 poemas, é o de número 22. Uma análise do que o precede e do que o sucede revela um movimento em onda – de avanço, ápice e recuo: onde o avanço é um crescendum temático que atinge a sua síntese em “a mina de ouro de minha mãe & de minha tia” e nos poemas imediatamente ao redor deste; e o recuo é um contraponto dialético que retoma os mesmos temas pré-síntese, em uma espécie de balanço sóbrio e desconfiado da validade do que acabou de ser conquistado, onde o que parece desacelerar na verdade pondera e amadurece, para arrematar a jornada com um último poema, “fim”, que com uma postura bem-humorada e lacônica, reconhece com humildade as conquistas do livro e onde, diante do espelho e se comparando ao poeta John Keats em um momento de depressão, quando ele se achava “mais pateta que poeta”, ela diz “é, gata” para depois arrematar: “saí num pulo / só fui rir no elevador” (p.58).


Os poemas de "Rilke Shake", organizados nesse desenho ondular, se dividem em quatro tipos de estratégia da poeta para colocar o seu eu no mundo e delinear sua identidade:


I. A primeira estratégia é a dos poemas onde o eu-lírico Angélica Freitas se insere de penetra na lembrança e nas histórias dos seus ídolos literários e artísticos, os seus amuletos. Não à toa, todas elas mulheres e identificadas com a sigla LGBTQIA+. Identificação pessoal, portanto. [8] Ela tenta imaginar lembranças verossímeis destas figuras do passado ou colocá-las em novas situações francamente inventadas.


II. A segunda estratégia é a dos poemas onde ela se insere na lembrança de familiares. Ela se coloca em momentos pretéritos onde não esteve realmente, senão seus parentes. Transportada no tempo, recria as cenas tais como as imagina, em um leque de possibilidades. O seu passado antes de sua existência.


III. A terceira estratégia, mais pessoal, é a dos poemas onde a poeta rememora, dessa vez, suas próprias lembranças. Certos episódios da infância são ressignificados e construídos dentro da ótica subjetiva – também mais lúcida, também mais deliberada – do presente.


IV. A quarta e última estratégia se encontra nos poemas onde o eu-lírico se coloca no imediatismo das ruas apinhadas, em um mundo presente recheado de absurdo, falta de lógica e elementos fantásticos. Não há revisitação ou recriação da memória, sim reinvenção do agora como concepção de um refúgio urgente – pela imaginação nonsense nega-se a normalidade e os perigos do momento imediato.

O primeiro movimento do livro, a onda crescente de vinte e um poemas que culmina no central “a mina de ouro de minha mãe & de minha tia” e na concentração dos conceitos-chave da obra (memória, família, identidade e feminismo) intercala os poemas das estratégias III e IV com relativa regularidade, com predomínio de IV. Nestes, as imagens abstratas se destacam. Ela escreve no poema inaugural: “Dentadura perfeita, ouve-me bem: / não chegarás a lugar algum. / são tomates e cebolas que nos sustentam,” (p.7). Em “autofocus”, escreve: “o remordimento é algo / muito difícil / você me disse / mordendo / o próprio rabo” (p.9). Em “poema pós-operatório”: “você passa na rua / e as reconhece // ei, ali vai minha / oitava costela!” (p.16). Nesse mundo de absurdos, numa identidade em construção posta à prova dos olhares desconfiados da metrópole, há os breves momentos de III, onde a memória pessoal começa a se destacar da massa abstrata. “Fliperama às margens do tâmisa / jogo basquete indoors com minhas irmãs // no primeiro arremesso / - não meço bem a distância / entre a mão e a cesta - / a bola some atrás do aparelho // minhas irmãs gargalham / eu também” (p.10). Ou: “meu avô não gostava de agosto / dizia agosto mês de desgosto / quando passava dizia agora não morro mais” (p.13). O eu-lírico indefinido do mundo abstrato começa a ganhar contornos mais definidos.


Prestes a chegarmos em “a mina de ouro de minha mãe & de minha tia”, surgem poemas das estratégias I e II. De I, onde nomes poderosos são invocados como modo de traçar paralelos e linhas para a própria identidade, a poeta traz o casal Lota de Macedo e Elizabeth Bishop em “liz & lota” (p.29): “imagino a Bishop entre cajus / toda inchada e jururu / da janela o rio e a seu / lado a lota, com um conta-gotas”. De II, onde a poeta relembra a própria infância e a repensa, “l’enfance de l’art” (p.21) traz “porque eu perdia a pose mamãe me deu uma cadeira / elegante de veludo burgundy (...) / (...) papai chegava tarde e ao / me ver sentada lendo pedro nava suspirava e tirava / trollope da estante (...)”. Depois (p.30), escreve: “aos onze anos / atrás da casa da minha avó / na colônia de pescadores z-3 / eu fumava um cigarro gol comprado / avulso num boteco” e “e lá onde tinha uma horta / eu minha irmã e uma prima / demos nossas primeiras baforadas / foi bem ruim / o medo deu uma estragada”.


Até aqui, Angélica Freitas traçou todos os pontos principais do livro e que encontrarão síntese em “a mina de ouro de minha mãe & de minha tia”: episódios do passado, rememoração da família e identidade; presença de mulheres fortes e marcantes, sejam mulheres da família, sejam suas grandes inspirações artísticas. Ela afirma sua identidade de mulher de força e potência ao dar espaço a outras mulheres de força e potência. É preciso clarear o passado para traçar presente e futuro. Logo após “a mina de ouro de minha mãe & de minha tia”, vem uma série de sete poemas onde Angélica brinca com figuras como Gertrude Stein, Alice B. Toklas, Djuna Barnes e Josephine Baker (estratégia do tipo I). Essas heroínas, todas homossexuais ou bissexuais, são dessacralizadas. Em “na banheira com gertrude stein” (p.32), ela escreve “gertrude stein tem um bundão chega pra lá gertrude”. No poema seguinte (p.33), retoma a situação e arremata um momento “sem amor e sem toalha”.


Não é difícil imaginar que a poeta não traça diferença entre Stein e sua mãe, entre Bishop e sua tia e suas irmãs: entre memórias inventadas em um passado de Paris e contos das histórias de família em Pelotas, ela busca um mundo melhor que aquele que ela vai encontrar nos poemas seguintes, onde a onda recua e se retoma os poemas dos tipos III e IV, onde “agora que raspei a cabeça / não vou demorar nas esquinas” (p.42) e onde “tenho pavor de festinha / aparo as arestas da farsa / visto minha roupa nova / mas hoje não saio de casa” (p.44). Era mais seguro estar rodeada das mulheres-amuleto.


Angélica Freitas não é a única poeta brasileira contemporânea a trazer os laços familiares e as memórias-refúgio para a sua poesia como modo de construir uma identidade. Vera Pedrosa (1936), por exemplo, escreve em “Para Lívia”, poema reunido em uma antologia de 1975: “Pensar que tua avó / criou-se nessa chácara” e “Onde tua tia-avó / delimitava áreas / de horror e solidão. / Pensar que passavam os dias / encolhidas / (embaixo dessas árvores) / em pontos de sombra”.[9] Ana Cristina César (1952-1983) escreve em um poema sem título do livro "A Teus Pés" (1982): “Volta e meia vasculho esta sacola preta à cata de um três por / quatro. / (...) / Nesta volta e meia vira e mexe acabo achando ouro na sacola. / Fabulosas iscas do futuro. / (...) / Papai, mamãe, a linha do horizonte”.[10] Já Alice Sant’Anna (1988) escreve em “os primos”: “todo dia era dezembro na rua / miguel pereira mesmo quando chovia mesmo / naquele dia do tombo / de patinete o meu grito ecoando / e o seu espanto (...)”. [11]

O hábito não é exclusivo destas. Uma leitura rápida por autores do Modernismo brasileiro encontra família e sentimento nostálgico em poetas como Manuel Bandeira (“E enquanto anoitece, vou / Lendo, sossegado e só, / As cartas que meu avô / Escrevia a minha avó. // Enternecido sorrio”) [12] e Carlos Drummond de Andrade (“Alguns anos vivi em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / (...) / Itabira é apenas uma fotografia na parede. / Mas como dói!”). [13] Diante de um mundo convulsionado, moldado pelo rolo compressor do século 20 e 21, os poetas resistem à tirania, protegem suas alteridades postas em perigo, se refugiam na memória e na infância, pois “a memória, como forma de pensamento concreto e unitivo, é o impulso primeiro e recorrente da atividade poética”. [14]

A proposta de trazer o nome de suas heroínas também encontra ecos em outras autoras contemporâneas. Hilda Machado (1951-2007), em “Poeta”, escreve “e diga / parece Adélia / diluidora vagabunda me mato / e a revolta? / afinal não é tudo que parece Adélia / da outra, a Hilst, nem é bom falar / ou Orides” [15]. Adélia Prado, Hilda Hilst e Orides Fontela, portanto. Claudia Roquette-Pinto (1963), por sua vez, cita a pintora mexicana Frida Kahlo no título do poema “Os Frutos da Terra (Frieda Kahlo)” e a pintora americana Georgia O’Keeffe em “Pingente (Flor de Banana) (Georgia O’Keeffe)” [16]. Já Josely Vianna Baptista (1957) dedica o poema “Zen - Riders” à escritora canadense Carol Dunlop.[17] E, novamente, Ana Cristina César: em "A Teus Pés", a poeta faz um “poema-referências-bibliográficas”, um índice onomástico que na verdade é poema (ou ao contrário) e cita homens e mulheres referenciais ou a serem pinçados como enigmas naqueles versos. Entre elas, Billie Holiday, Emily Dickinson, Elizabeth Bishop, Gertrude Stein e Cecilia Meireles. [18]

Da força do díptico memória e “amuletos”, Angélica Freitas constrói no livro e em “a mina de ouro de minha mãe & de minha tia” uma mensagem de amor às mulheres responsáveis pela construção de sua identidade. Não são apenas Elisabeth Bishop e Gertrude Stein que, lésbicas e escritoras como ela, merecem ser rememoradas como forma de construir o eu em um presente atormentador: aquelas mulheres donas de casa da Ilha do Meio também têm lugar na sua narrativa pessoal. Com crianças ranhentas no colo, elas têm tanto espaço no processo antropofágico da poeta quanto a intelectualidade de Stein em Paris ou de Bishop no Rio de Janeiro: engolir e regurgitar no presente a ser reinventado as inspirações e as memórias como oportunidade preciosa de construir a sua biografia. Não à toa, o título do livro sintetiza o processo curioso e bem humorado: “eu peço um rilke shake / e como um toasted blake” (p.39).


Se em "Rilke Shake" há um mundo possível, onde a identidade se constrói com relativa calma e leveza, no livro seguinte de Angélica Freitas, "Um Útero É do Tamanho de um Punho" (2012), os poemas se revelam mais urgentes; e o futuro, incerto. A identidade é posta em xeque. Em "Rilke Shake", as inevitáveis questões de feminismo, machismo e identidade são discutidas nas entrelinhas. Há certo deslocamento da figura feminina tradicional e conformada à heteronormatividade que a sociedade exige: “porque eu perdia a pose mamãe me deu uma cadeira / elegante de veludo burgundy (...)” (p.21); ou “com as boas garotas / de sodoma, essas que / sempre // se beijavam nas escadas / sumiam nas bibliotecas” (p.51). Em "Um Útero É do Tamanho de um Punho", as questões políticas são imperativas. Os tempos são mais violentos e imprevisíveis. Estupro, assédio, machismo, controle e punição sobre os corpos das mulheres: debates das páginas policiais. Dessa vez, a identidade se impõe, não se constrói. É questão de sobrevivência denunciar as forças reacionárias e a elas resistir.


Ao lado do debate urgente, o livro é permeado por humor e ironia – um contraponto retórico essencial para a argumentação diante do leitor se mostrar menos pesada e, mesmo assim, mais incisiva e convincente. Em um poema, ela escreve: “uma mulher sóbria / é uma mulher limpa / uma mulher ébria / é uma mulher suja”.[19] Em outro: “uma mulher incomoda / é interditada / levada para o depósito / das mulheres que incomodam”.[20] A questão do assédio fica evidente em “o que será que ela quer / essa mulher de vermelho / alguma coisa ela quer / (...) / sou euzinho o que ela quer / só pode ser euzinho / o que mais podia ser”.[21] Por sua vez, identidade e transsexualidade aparecem em “pois agora eu virei mulher / me operei e virei mulher / não precisa me aceitar / não precisa nem me olhar / mas agora eu sou mulher”. [22]

Observando "Um Útero É do Tamanho de um Punho", "Rilke Shake" pode ganhar um olhar em retrospecto e adquirir mais nuances em sua leitura, mesmo que os poemas ali escritos, logicamente, desconheçam a existência do livro que viria cinco anos depois. Mas já há sementes de tons melancólicos: “lá embaixo um samba que não me chama / pois não conhece o meu nome” (p.43), por exemplo, indicando que tempos mais sombrios já se prenunciam. Mas, entre os poemas repletos de humor, de cenas banais ou surreais, há potência, há a força clara da resistência e do deboche diante do reacionarismo, como no “estatuto do desmallarmento”: “minha senhora, tem um mallarmé em casa? / você sabe quantas pessoas morrem por ano / em acidentes com o mallarmé?” (p.53). O mais importante continua sendo buscar forças ao olhar ao redor e encontrar resiliência, independência e potência nas figuras que tinham a sua mina de ouro e, de bote motorizado, trabalhavam e voltavam (íntegras, satisfeitas, sorridentes?) no fim da tarde com seus “sacos de dinheiro”.

REFERÊNCIAS


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BANDEIRA, Manuel. Seleta de Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.


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- “As grandes minúsculas de valter hugo mãe”. Site JL, 24/01/2010. https://bit.ly/2K6VjUt


- “Conheça os dois últimos moradores da Ilha da Feitoria, na Lagoa dos Patos”. Site GaúchaZH, 10/03/2017. https://bit.ly/2XzsbZi


- “Poesia lésbica escrita por mulheres: dupla marca de subjetividade contra o rochedo da inexistência”. Site Revista Cult, 24/11/2016. https://bit.ly/2X1tiDQ


NOTAS


[1] FREITAS, Angélica. Rilke Shake. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. p.31. Todos os demais versos e poemas do livro Rilke Shake citados ao longo do ensaio pertencem a essa edição indicada em 1. Os números das páginas em questão estarão devidamente apontados.


[2] “Conheça os dois últimos moradores da Ilha da Feitoria, na Lagoa dos Patos”. Site GaúchaZH, 10/03/2017. https://bit.ly/2XzsbZi


[3] Desconhecemos os motivos pessoais de Angélica Freitas para a opção das minúsculas, mas o autor português valter hugo mãe, famoso por eliminar as maiúsculas até mesmo de seu nome, fala em uma “limpeza formal do texto”, sendo as maiúsculas uma “sinalética” que atrapalha a leitura e afasta o texto do modo como realmente falamos. In “As grandes minúsculas de valter hugo mãe”. Site JL, 24/01/2010. https://bit.ly/2K6VjUt


[4] SPINA, Segismundo. Na Madrugada das Formas Poéticas. Cotia: Ateliê Editorial, 2002. p.47.


[5] BURTON, Samuel Holroyd. The Criticism of Poetry. Essex: Longman House, 1974. pp.64-67


[6] ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 2008. pp.22-26.


[7] HAMBURGER, Michael. “Uma nova austeridade” In A Verdade da Poesia. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.307.


[8] “Poesia lésbica escrita por mulheres: dupla marca de subjetividade contra o rochedo da inexistência”. Site Revista Cult, 24/11/2016. https://bit.ly/2X1tiDQ


[9] PEDROSA, Vera. In DE HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org.). 26 Poetas Hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2001, 4ª edição. p. 125.


[10] CÉSAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 116.

[11] SANT’ANNA, Alice. Rabo de Baleia. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p.11.


[12] BANDEIRA, Manuel. “Cartas de Meu Avô” In Antologia Poética. São Paulo: Global Editora, 2013. 6ª edição. p.29. O poema é de “A Cinza das Horas”, livro de 1917.


[13] DE ANDRADE, Carlos Drummond. “Confidência do Itabirano”. In Sentimento do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.10.


[14] BOSI, Alfredo. “Poesia-resistência” In O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 8ª edição. p.177.


[15] MACHADO, Hilda. Nuvens. São Paulo: Editora 34, 2018. p.57. A autora escreveu os poemas desse livro nos anos 1990.


[16] ROQUETTE-PINTO, Claudia. In DE HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org.). Esses Poetas. Uma Antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1998. pp.122-123.


[17] BAPTISTA, Josely Vianna. In DE HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org.). Esses Poetas. Uma Antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1998. p.194.


[18] CÉSAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 124.


[19] FREITAS, Angélica. Um Útero É do Tamanho de um Punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p.13.


[20] ibid., p.15.


[21] ibid., p.31.


[22] ibid., p.3

 

Citação: DEARO, Guilherme. "Memória, identidade e reinvenção em Rilke Shake, de Angélica Freitas". São Paulo: FFLCH/USP, junho de 2019.

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