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  • Guilherme Dearo

Molloy e Moran: construções de personagens em Beckett

Atualizado: 28 de jun.

Molloy e Moran: a construção de identidades e diferenças nos personagens de Molloy, de Samuel Beckett



Escritos após a Segunda Guerra Mundial, os romances Molloy, Malone Morre e O Inominável formam uma trilogia temática e são as primeiras experiências em prosa longa de Samuel Beckett (1906-1989) em língua francesa [1]. Antes, havia escrito as novelas "O fim", "O expulso" e "O calmante" naquele idioma. Deste momento da literatura beckettiana, pode-se dizer:


Marcado na sua predileção por solilóquios e pelo esquadrinhamento detalhista do processo interior de personagens que tentam atribuir ou reconhecer sentido no mundo (menos) e em si próprias, por criaturas cuja incapacidade para a ação está muitas vezes representada na deficiência física (paralíticos, cegos, mutilados em geral são protagonistas frequentes de seus romances), a ficção de Beckett institui uma nova ordem de realismo que reconstrói na linguagem a falência do sujeito burguês (...). (ANDRADE, 2001, p. 30)


Em Molloy, elementos como personagens e temporalidade não são convencionais, propondo um ponto de estranhamento ao leitor no efeito de real. Como explica Fábio de Souza Andrade, Beckett ataca na trilogia aspectos da convenção literária como tempo, espaço, constituição da voz narrativa, personagens e enredo (2001, p. 16). São nesses romances, ao adotar o narrador em primeira pessoa, que “a extensão do fosso separando sua ficção do realismo clássico se evidencia” (Ibid., p. 19). Neles, culmina-se a dissecção do eu, evidenciando a crise do preceito da objetividade do narrador (Ibid., p. 21).


O romance traz duas personagens narradoras, Molloy e Moran, que dividem a obra em duas narrativas aparentemente independentes. Na primeira parte, o velho Molloy fala da sua busca pela mãe. Na segunda parte, o investigador Moran é designado para encontrar Molloy e produzir um relatório, embora o objetivo profundo de tal tarefa lhe escape. Ambos, com dificuldades, narram suas jornadas e passeiam por episódios do passado e do presente. O espaço exterior e o Outro surgem como que borrados como plano de fundo, enquanto o Eu se torna o tema absoluto do relato: “Beckett cuts through the circumstantial detail of fiction, down to the ‘I’ who tries to talk about himself”, diz Ruby Cohn (1973, p. 79).


Molloy inicia sua narrativa falando de um passado que se torna presente: “Estou no quarto de minha mãe. Sou eu que moro lá agora. Não sei como cheguei lá” (2014, Posição 218). [2] Velho, ele é cru (fala de sexo, ânus, fezes), tem manias (chupa pedras que leva nos bolsos), e até mesmo cruel (balança-se com suas muletas para chutar um morto), tendo posição fria em relação à mãe. Já o segundo narrador, Jacques Moran, é um investigador de polícia e define-se como alguém de espírito metódico. Ele almeja passar a imagem de segurança e gosta das rotinas. Tem um filho, que controla com rédeas curtas. Sua presente missão é Molloy: “Lembro-me do dia em que recebi a ordem de me ocupar de Molloy. Era um domingo de verão.” (Posição 1654).


Os extensos solilóquios em primeira pessoa são a única fonte de determinação dos sujeitos enquanto personagens. O leitor só os conhece por suas autodescrições e por suas memórias, que os colocam em confronto com outros personagens dos quais pouco ou nada sabemos (o chefe de Moran, uma velha amante de Molloy, um vagabundo que encontram na rua etc.). Sem tais palavras, não teríamos acesso aos aspectos físicos e psicológicos dos personagens, assim como nada saberíamos de suas ações. Molloy é velho, tem uma perna que mal funciona, a outra começa a falhar. Já Moran é distinto, tem um bigode, mora em uma casa com uma empregada. Ficamos sabendo que Molloy matou um cachorro, se relacionou com Lousse e com uma mulher de nome indefinido (Ruth, Edith, Rose), enquanto Moran tem como chefe um tal de Youdi, e que através de Gaber lhe chega a missão de investigar Molloy.


As semelhanças entre os dois relatos, aproximando física e mentalmente os personagens, ficam evidentes em comparação: os nomes Molloy e Moran se aproximam sonoramente; ambos partem em uma jornada, buscando alguém; ambos têm relações estranhas com membros da família; ambos têm bicicletas; ambos apresentam problemas nas pernas; ambos têm “carinho” por seus chapéus; ambos têm poucos ou nenhum dentes; ambos atacam um homem; ambos cometem assassinato. As coincidências são muitas.


Essas descrições, contudo, são imprecisas, pois um dos traços mais precisos desses personagens é, justamente, a sua dificuldade em narrar-se a si. A todo momento, Molloy e Moran evidenciam as falhas de suas descrições e reminiscências, assim como sua impotência em ser um narrador. Molloy hesita, recua, não apresenta firmeza e certeza diante do leitor. Chega a esquecer o nome da mãe ou seu próprio nome. Frases como “quero dizer”, “deixem-me explicar” ou “ao que me parecia” são comuns. Nessa incerteza, ele também fala diretamente ao leitor, em tentativas de se fazer explicar: “Não sei grande coisa, francamente.” (Posição 222); “Esqueci a ortografia também, e a metade das palavras. Isto não tem importância, ao que parece.” (Posição 227); ou “Estou inventando um pouco talvez, embelezando talvez, mas no geral era assim.” (Posição 244). Para Ana Helena Souza,


Molloy está sublinhando tanto suas possibilidades de criação ficcional quanto sua inadequação à realidade factual, sua condição de pária. Molloy, além disso, não se atém apenas às incertezas da memória e da própria observação; o processo de registro de uma realidade precariamente recuperada ocupa lugar de destaque na escrita (...). (2014, Posição 77-82)


Moran, por sua vez, passa por um deterioramento físico e mental. Enquanto Molloy, desde o início, evidencia suas limitações, Moran inicia a narrativa com uma linguagem mais precisa e rebuscada (“Mesmo se, à leitura do relatório de Gaber, o caso parecera indigno de mim, a insistência do chefe em me empregar, eu, Moran, mais do que um outro, e a novidade de o meu filho me acompanhar, deveriam ter me advertido de que se tratava de um trabalho fora do comum.” - Posição 1724), mas vai piorando ao longo da jornada, mudando, inclusive, fisicamente, até se parecer com Molloy. As pernas enrijecem, se arrasta pelo chão em busca de suas chaves. Ele diz: “Agora, quanto ao corpo, parecia que ia me tornando rapidamente irreconhecível. E quando passava as mãos pelo rosto, num gesto familiar e agora mais do que nunca desculpável, não era mais o mesmo rosto que as minhas mãos sentiam e não eram mais as mesmas mãos que o meu rosto sentia.” (Posição 2972).


Se Moran apresentava uma narração em primeira pessoa mais precisa no início de seu monólogo “de acordo com as convenções de plausibilidade e verossimilhança dominantes na ficção realista” (SOUZA, 2014, Posição 152), o que indicava a certeza em seu próprio trabalho - logo, a certeza na sua identidade, no seu personagem de “detetive” - essa confiança vai desaparecendo, e ele começa a reiterar suas dúvidas: “Ainda não sabia o que devia fazer com Molloy, quando o tivesse encontrado.” (Posição 2759); ou “Mas tentava também me lembrar do que devia fazer com Molloy, uma vez que o tivesse encontrado.” (Posição 2599).


Não conseguir narrar, para esses dois personagens, é não conseguir construir os próprios limites, é não descrever realisticamente os seus personagens aos outros, logo, é não se realizar integralmente. Se o personagem narra, uma narração em crise coloca esse personagem em crise. Como analisa Theodor Adorno em “Posição do narrador no romance contemporâneo”, a crise da narração “é uma decorrência do subjetivismo, que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade” (2003, p. 55); e “O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite” (Ibid. p. 56).


Os personagens não têm certeza de si. Perdidos em suas mentes, definir a própria identidade vai se tornando tarefa árdua. O eu do personagem passa por uma dissolução: se ele não sabe de si, também o leitor está à deriva. Molloy diz coisas como “É na tranquilidade da decomposição que me recordo dessa longa emoção confusa que foi a minha vida” (Posição 531) ou “Fazia tanto tempo que eu vivia longe das palavras, vocês compreendem (...) É difícil demais de dizer, para mim. Da mesma forma a sensação do meu eu se envolvia num anonimato frequentemente difícil de penetrar (...)” (Posição 626-632). Já Moran, em crise, fala coisas como “Não conseguia compreender o que estava acontecendo comigo. (...) Minha vida estava se esvaindo, mas ignorava por onde” (Posição 1820) ou “E o fato de não me deter mais nisso marcava ainda quanto já tinha mudado e quanto me tornara indiferente à posse de mim mesmo” (Posição 2607).


Ruby Cohn diz dessa hesitação ontológica de Molloy, que também acaba por atingir Moran (1973, p. 82):


Molloy’s hesitation and self-contradictions are a concentration of Western intellectual anguish: What am I? Where does my self begin and end? Where does my freedom begin? Are there any laws for my mind? Or is it submerged in the worlds I learn? Molloy’s implication of the inadequacy of words is familiar to anyone who has worked with words.


O romance de Beckett permite zonas cinzentas suficientes para levar a diferentes interpretações do significado do binômio Molloy-Moran. Há a possibilidade de enxergar os dois personagens como “o mesmo personagem”, ou entender os dois como faces distintas de uma “mesma coisa”, como a imagem de uma carta de baralho. Ou, ainda, enxergá-los como original e cópia, criador e criatura. As semelhanças das narrativas são vistas por alguns críticos como “pistas” de que tudo não passa “da mesma coisa”. Para Ana Helena Souza, é incorrer em erro “querer ver em Moran e Molloy o mesmo personagem. Algo decisivo ficará de fora” (2014, Posição 202-207). Ela também analisa (Ibid., Posição 185-191):


Tais semelhanças despertam no leitor a tentação de ver em Molloy um estágio posterior de Moran e, no entanto, nada nos assegura disso, como nada dá margem à possibilidade de criar identificações entre os personagens, pois tudo isso faz parte das incertezas constantemente criadas pela narrativa.


Steven Connor (1988), por sua vez, considera que é preciso ter cuidado em postular similaridades entre os dois personagens, a partir das repetições e das coincidências dos relatos, concluindo imediatamente uma relação complementar, como duas metades. Ele diz (pp. 57-58):


To postulate a relationship of similarity between Molloy and Moran is to imagine each as possessing some sort of identity, if only in a fixed and absolute difference from the other. (...) It is the problematic relationship of near-identity which makes the reader lose the sense of priority and proportion between the two characters.


Para ele, é necessário não confiar automaticamente na dicotomia original/cópia, entendendo Molloy e Moran como secundário a outro, mas lembrando que cópias e suas repetições são complementares, e mesmo aquele que reproduz, em seu caráter secundário, reafirma a unidade do original, em relação parasitária e necessária (Ibid., pp. 59-60).


Já para Edith Kern (1970), há uma leitura nietzschiana comparando os pólos apolíneos e dionisíacos dos dois personagens. Moran, apolíneo, que começa ordeiro, com controle de si, durante sua busca vai ficando atormentado pela quimera que é Molloy, que se apossa dele (p.38). Kern diz: “Molloy ‘comes to’ Moran and leaves an impression of utter absurdity” (p. 38). Esses dois pólos juntos se articulam em um único ser, indicando uma duplicidade:


Beckett’s choice of “Molloy” as title for the entire novel reflects his insistence on the ultimate one-ness of Moran and Molloy in the manner of “the one hero in two aspects”. (p.40)


Molloy e Moran, afinal, são personagens autodescritos, que só existem em seus discursos autorreferenciais, em primeira pessoa, e é apenas pela memória e parole, ao mesmo tempo gastas e afiadas, que podem ser conhecidos. Se falham em lembrar e narrar, em se situar no espaço-tempo, assim acaba sendo o retrato do personagem que é colocado ao leitor. Os narradores em primeira pessoa, ora levados pela voz de suas consciências, ora desconfiados que uma outra voz lhes fala à mente, não se deixam conhecer para além dos limites de suas mentes e de suas palavras que não podem ser verificadas. São personagens beckettianos típicos, como diz Andrade (2001), onde, “a um corpo decrépito, máquina gasta e desconjuntada, alia-se a um espírito analítico extremamente aguçado, herdeiro dos despojos de séculos de racionalismo ocidental, portador de farrapos de erudição (...)” (2001, p. 33). A identidade do personagem de Beckett, aqui, só pode ser conhecida pela linguagem, mas ela é falha. Diz Enrico Testa (2019, p. 32)


A ruína da linguagem também é, assim, a ruína da identidade. Envolvida no mesmo desmoronamento ontológico, esta última é também percebida como artifício, falsidade e ilusão.


Para Testa, Molloy - também, a trilogia - é uma obra novecentista que com muita intensidade “propõe e realiza uma radical dissolução da categoria do personagem” (Ibid., p. 27), colocando os personagens em um processo de evanescência. E bem analisa, mostrando como os personagens beckettianos de Molloy se destacam do personagem clássico (Ibid., p. 33):


Não há espaço fora do eu - mesmo sendo espectro ou evanescente figura (...). Uma separação absoluta distingue, então, esse eu que Beckett constrói com traços caracterizantes de uma riqueza como a que normalmente é dedicada aos personagens ‘clássicos’ da narrativa.


Notas


[1] Da mudança do inglês para o francês, Fábio de Souza Andrade analisa: “O abandono temporário da língua materna já foi justificado de diversas maneiras; a mais consistente delas parece ter relação direta com sua virada estilística - abandonar o inglês permitiria calar os ecos e cacoetes formais, escrever ‘sem estilo’, simplificar a dicção” (2002, p. 11).


[2] Essa e todas as demais referências diretas a Molloy trarão Posições (ebook) e se referem a: BECKETT, S. Molloy. São Paulo: Editora Globo, 2014. 2ª edição. Ana Helena Souza (trad.). Ebook.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ADORNO, T. “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In:______. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003, pp. 55-63.


ANDRADE, F. S. “Matando o tempo: o impasse e a espera”. In: BECKETT, S. Fim de Partida. São Paulo: Cosac Naify, 2002, pp. 7-31.


ANDRADE, F. S. Samuel Beckett: o Silêncio Possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.


BECKETT, S. Molloy. São Paulo: Editora Globo, 2014. 2ª edição. Ana Helena Souza (trad.). Ebook.


COHN, R. Back to Beckett. Princeton: Princeton University Press, 1973.


CONNOR, S. “Repetition in Time: Proust and Molloy”. In:______. Samuel Beckett - Repetition, Theory and Text. Oxford: Basil Blackwell, 1988, pp. 44-63.


KERN, E. “Moran-Molloy: the hero as author”. In: O’HARA, J. D. (ed.). Twentieth Century Interpretations of Molloy, Malone Dies, The Unnamable - A Collection of Critical Essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1970, pp. 35-45.


SOUZA, A. H. “Molloy: dizer sempre, ou quase”. In: BECKETT, S. Molloy. São Paulo: Editora Globo, 2014. 2ª edição. Ebook.


TESTA, E. “Sem nomes próprios, não há salvação”. In:______. Heróis e Figurantes: o Personagem no Romance. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2019, pp. 27-35.

 

Citação: DEARO, Guilherme. "Molloy e Moran: construções de personagens em Beckett". São Paulo: FFLCH/USP, Dezembro de 2022.


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