O mito de Prometeu e Pandora em Hesíodo
Atualizado: 28 de jun.
Prometeu e Pandora em "Teogonia" e "Os Trabalhos e os Dias", de Hesíodo
Os mitos de Prometeu e Pandora, vastamente explorados na literatura e nas artes ao longo dos séculos, aparecem em dois poemas do aedo Hesíodo, poeta que teria sido contemporâneo a Homero, vivendo por volta de 750 a.C. na região de Beócia, na Grécia da Era Arcaica. De seus trabalhos, três chegaram até os dias de hoje: os poemas Teogonia, Os Trabalhos e Os Dias, e O Escudo de Héracles. Como explica JAA Torrano (2017, p. 16),
Nesta comunidade agrícola e pastoril anterior à constituição da pólis e à adoção do alfabeto, o aedo (i.e., o poeta-cantor) representa o máximo poder da tecnologia da comunicação. Toda a visão de mundo e consciência de sua própria história (sagrada e/ou exemplar) é, para este grupo social, conservada e transmitida pelo canto do poeta. (...) um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas).
Torrano explica que:
O aedo (Hesíodo) se põe ao lado e por vezes acima dos basileîs (reis), nobres locais que detinham o poder de conservar e interpretar as fórmulas pré-jurídicas não-escritas e administrar a justiça entre querelentes e que encarnaram a autoridade mais alta entre os homens. Esta extrema importância que se confere ao poeta e à poesia repousa em parte no fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memória (no sentido religioso e no da eficiência prática), e em parte no imenso poder que os povos ágrafos sentem na força da palavra e que a adoção do alfabeto solapou até quase destruir. (2017, p. 17)
Contudo, é importante destacar que o homem “Hesíodo” pode nunca ter existido, mas sim seria um elemento de uma tradição mitopoética daquela sociedade. Diz Christian Werner (2013b, p. 10):
Todavia, inúmeros aspectos relacionados à cultura grega coeva que podem ser reconstruídos hoje com uma margem de erro razoavelmente grande fazem muitos pesquisadores duvidarem da existência de um poeta histórico chamado Hesíodo e que ele tenha composto por escrito os poemas associados ao seu nome.
Na Teogonia (no grego Theogonia: theos, deus, + genea, origem), poema de 1022 versos escritos em hexâmetro dactílico, Hesíodo descreve a origem e a genealogia dos deuses. Em primeira pessoa, o aedo sistematiza a história da criação do mundo e dos deuses. Como aponta Werner (2013a, p. 13), no poema
teogonia e cosmologia são inseparáveis à medida que o espaço se constitui e as genealogias divinas se sucedem. As divindades que passam pelo poema - mais de 300 - são de diversos tipos no que diz respeito a cultos e mitos (...) Há deuses do panteão olímpico, muito cultuados; há deuses com papel menor, provavelmente nunca objetos de culto, como Atlas e Titãs; partes do cosmo divinizadas, como Terra, Noite, Montanhas; personificações; deuses que só aparecem em Hesíodo, que podem ser recursos típicos dessa tradição.
Já em Os Trabalhos e Os Dias, poema de 828 versos, também em escrito em hexâmetros dactílicos, aparece, além do mito de Prometeu e Pandora, questões como o mito das cinco raças, uma representação das estações do ano, com suas respectivas atividades agrícolas, além “de trechos propriamente mitológicos e de uma figuração ético-poética da vida agrícola, tópicos morais, políticos e religiosos compõem esse poema que, em certa medida, utiliza a mesma linguagem das narrativas épicas de Homero” (WERNER, 2013b, p. 9). Explica Mary de Camargo Neves Lafer (2019, p. 11):
Se na Teogonia Hesíodo mostra como se organiza o mundo dos deuses, apresentando-nos sua genealogia, mostrando sua linhagem e como foram distribuídos seus lotes e suas honras, em Os Trabalhos e os Dias, ele nos mostra algo diferente: a organização do mundo dos mortais, apontando sua origem, suas limitações, seus deveres, revelando-nos, assim, em que se fundamenta a própria condição humana.
Na Teogonia, o mito de Pandora aparece nos versos 535 a 616, sendo que a ênfase do episódio recai sobre a disputa entre Zeus e Prometeu - e Pandora não é nem mesmo citada nominalmente. Já em Os Trabalhos e Os Dias, Pandora ganha relevante destaque, também em meio ao relato da história de Prometeu, e aparece entre os versos 42 e 105. Diz Luiz Otávio Mantovaneli: “Hesíodo aborda este mito [Prometeu] tanto na Teogonia, quanto nos Erga, e a forma que o faz neste último parece ser uma complementação da primeira” (2009, p. 192).
Lemos na Teogonia que Prometeu tentou “trapacear o espírito de Zeus” (v. 537) [1], pois “ali os alvos ossos do boi com dolosa arte / dispôs e cobriu-os com a brilhante banha.” (vv. 540-541). Zeus, percebendo o dolo, “nas entranhas previu / males que aos homens mortais deviam cumprir-se.” (vv. 551-552). Colérico, ele “negou nos freixos a força do fogo infatigável / aos homens mortais que sobre a terra habitam” (vv. 563-564). Prometeu, que tem o epíteto de “bravo filho de Jápeto” (v. 565), responde roubando o fogo e dando aos homens: “furtou o brilho longevisível do infatigável fogo / em oca férula;” (vv. 566-567).
Zeus responde mais uma vez, dessa vez dando algo ao invés de tomar: cria, com a ajuda de Hefesto, Atena e outros deuses, a primeira mulher, Pandora, e sua metonímia, o jarro selado que ela carrega, e estes levam o mal aos homens, que antes o desconheciam. Sem nomear Pandora, o poema diz que Zeus “criou já ao invés do fogo um mal aos homens” (v. 570) e que “Após ter criado belo o mal em vez de um bem / levou-a lá onde eram outros Deuses e homens” (vv. 585-586). Pandora representa a primeira mulher e o mal aos mortais: “Dela descende a geração das femininas mulheres. / Dela é a funesta geração e grei das mulheres, / grande pena que habita entre homens mortais, / parceiras não da penúria cruel, porém do luxo.” (vv. 590-593). O episódio conclui com o poder inescapável de Zeus: “Não se pode furtar nem superar o espírito de Zeus / pois nem o filho de Jápeto o benéfico Prometeu / escapou-lhe à pesada cólera” (vv. 613-615).
Já em Os Trabalhos e Os Dias (Erga) [2], Hesíodo explica com mais detalhes o mito de Pandora e sua ligação com o mito de Prometeu, dessa vez citando Pandora nominalmente. Esse trecho do poema inicia explicando que os homens, no início, não precisavam trabalhar: “senão comodamente em um só dia trabalharias / para teres por um ano, podendo em ócio ficar;” (vv. 43-44). Em seguida, Hesíodo canta resumidamente o mito de Prometeu, dizendo que Zeus ocultou o fogo (v. 50) dos homens e que “de novo o bravo filho de Jápeto / roubou-o do tramante Zeus para os homens mortais / em oca férula” (vv. 50-52). Zeus responde a Prometeu: “grande praga para ti e para os homens vindouros! / Para esses em lugar do fogo eu darei um mal e / todos se alegrarão no ânimo, mimando muito este mal.” (vv. 56-58).
Em seguida, Zeus convoca Hefesto para criar a forma humana que ordena, “terra à água misturar e aí pôr humana voz e / força, e assemelhar de rosto às deusas imortais / esta bela e deleitável forma de virgem;” (vv. 61-63); e chama Atena para à figura ensinar trabalhos e tecer complexo tecido. Também convoca Afrodite e Hermes, que também obedecem a Zeus. Na figura, Zeus manda “pôr espírito de cão e dissimulada conduta” (v. 67). Hermes, Mensageiro Argifonte, coloca em seu peito “mentiras, sedutoras palavras e dissimulada conduta” (v. 78). Finalmente, “a esta mulher chamou / Pandora” (vv. 80-81), um “mal aos homens que comem pão.” (v. 82).
Quando Prometeu recebe o presente, logo entende o que acontecerá aos homens mortais. Se antes estes não conheciam trabalho ou pesares, agora o conhecerão. Canta Hesíodo: “Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos / a recato dos males, dos difíceis trabalhos, / das terríveis doenças que ao homem põem fim; / mas a mulher, a grande tampa do jarro alçando, / dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares.” (vv. 90-95). No jarro, fica a Expectação [“Esperança”], mas “outros mil pesares erram entre os homens” (v. 100). Assim como na Teogonia, o “episódio” termina com a reiteração do poder absoluto de Zeus: “Da inteligência de Zeus não há como escapar” (v. 105).
O fato de Hesíodo repetir os mitos nos dois poemas, de maneira distinta, é crucial. Analisa Lafer (2019, p. 53):
Isso que Hesíodo apresenta como uma única estória em seus dois famosos poemas é, de fato, uma versão própria e inovadora, resultante da combinação de dois mitos muito antigos que vêm de matrizes distintas. Na Antiguidade helênica o mito de Prometeu foi tratado em quatro obras notáveis: Protágoras, de Platão; Prometeu, de Esquilo; e Teogonia e Erga, de Hesíodo.
Os dois mitos, combinados, contam a história de como se estabeleceu a condição humana: a separação dos homens e dos deuses, surgindo a necessidade do sacrifício; o surgimento na necessidade do trabalho; e o surgimento da primeira mulher, e com essa primeira fêmea, a sexualidade, a diferenciação entre sexos e a necessidade da reprodução sexuada para a perpetuação da raça. Diz Lafer (ibid., p. 55):
É com Pandora que se instaura definitivamente a condição humana, que já se esboçava com o primeiro sacrifício no episódio da separação. Até aqui os humanos eram autóctones; com a primeira mulher surge a sexualidade, e é com a primeira fêmea, da raça dos mortais, que um novo ciclo se inicia (...). Pandora traz consigo um jarro (píthos) e, dentro dele, inúmeros males e a Elpís (Expectação).
Sobre o surgimento da necessidade do trabalho, basta lembrar que, antes desse presente repleto de males tramado por Zeus, os humanos viviam “a recato dos males” (Erga, v. 91), e “senão comodamente em um só dia trabalharias / para teres por um ano, podendo em ócio ficar;” (Erga, vv. 43-44). O passado ficou para trás, o passado onde “Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos / a recato dos males, dos difíceis trabalhos” (Erga, vv. 90-91).
Como explica Mantovaneli, “na Teogonia, a primeira mulher inaugura a linhagem das mulheres que vão consumir todas as formas dos homens (Teogonia, v. 591-612), enquanto nos Erga, Pandora dissemina os males sobre a terra ao destampar o jarro que os continha, restando apenas a Esperança (Erga, 90-105)” (2009, p. 193). O autor cita Córdova, dizendo que
o mito fala da condição humana a partir do afastamento entre homens e deuses, afastamento este que inaugura nos homens as obrigações de prestar sacrifício aos deuses e de trabalhar pelo sustento “senão, facilmente trabalharias por um só dia / e o tinhas por um ano, mesmo ficando ocioso.” (Erga, vv. 43-4), inaugurando também a cultura; fala ainda da Esperança, que é introduzida como um conceito ambivalente, mas fundamental para a humanidade. (2009, pp. 193-194)
Ele completa a análise interpretando que
é possível entender que o fogo que Prometeu retorna aos homens não é o mesmo fogo que Zeus ocultou. O fogo de Zeus, ou melhor, a centelha do seu raio, simboliza aquela espontaneidade criadora e criativa que os homens compartilhavam com os deuses, uma vez que homens e deuses procedem da mesma origem. O fogo de Prometeu integra a nova ordem do mundo para os homens, agora apartados e obrigados ao trabalho. É um fogo técnico, destinado à fabricação de instrumentos e ao cozimento dos alimentos, atividades desnecessárias na ordem anterior, mas agora imprescindível para a subsistência. O fogo de Zeus é um símbolo do poder. O fogo de Prometeu é um símbolo da falta. (2009, p. 197)
Além disso, é imprescindível perceber que trabalho humano (a agricultura) e sexo se ligam no mito de Pandora, como analisa Lafer (2019, p. 57):
Pandora é ligada à ideia do alimento que vem da terra e à instituição do casamento; ela é agora uma guiné gameté, uma mulher-esposa com quem deve se ligar o homem; da mesma forma que ele deve colocar a semente na terra, deve igualmente colocar a semente dentro dela para procriar. Essas fronteiras do que é propriamente humano se juntam a outros limites, como a necessidade do trabalho para sobreviver. Temos, então, três elementos que separam os imortais dos mortais: sacrifício, agricultura-alimento, sexualidade-casamento.
NOTAS
[1] Como na tradução de JAA Torrano, em: HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2017 (2ª ed.).
[2] Como na tradução de Mary Lafer, em: HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. São Paulo: Iluminuras, 2019 (2ª ed.).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. São Paulo: Iluminuras, 2019 (2ª ed.). Mary de Camargo Neves Lafer (trad.).
HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2017 (2ª ed.). JAA Torrano (trad.).
LAFER, M. C. N. “Introdução”; “Os mitos: comentários”. In: HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. São Paulo: Iluminuras, 2019 (2ª ed.).
MANTOVANELI, L. O. “Mitologar é uma forma de filosofar: A mitologia política de Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias e a genealogia do homem bom”. Dissertação de mestrado. UFRJ, 2009. Rio de Janeiro.
TORRANO, J. A. A. “O mundo como função de musas”. In: HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2017 (2ª ed.). JAA Torrano (trad.).
WERNER, C. “Introdução”. In: HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Hedra, 2013.
WERNER, C. “Introdução”. In: HESÍODO. Trabalhos e Dias. São Paulo: Hedra, 2013.
Citação: DEARO, Guilherme. "O mito de Prometeu e Pandora em Hesíodo". São Paulo: FFLCH/USP, Dezembro de 2022.
Comments