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Guilherme Dearo

O outro, o mesmo - leituras de Clarice Lispector

Atualizado: 28 de jun.

O outro, o mesmo: o narrador voyeur, a experiência epifânica e a potência do corpo em Clarice Lispector



Lima com grave pena os seus rigores

e se detém. Talvez tenha captado

do futuro e do seu horror sagrado

de rouxinóis remotos os rumores.


Sentiu talvez que estava acompanhado

e que o arcano, Apolo inigualado

lhe havia revelado algum arquétipo,

(...)

Jorge Luis Borges em “Um poeta do século XIII”, no livro “El otro, el mismo” [1]


O conjunto de romances, contos e crônicas de Clarice Lispector (1920-1977) se insere no contexto literário que se estruturou a partir dos anos 1930 no Brasil e se firmou nos anos 1940, absorvendo e criticando as conquistas de Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Oswald de Andrade (Semana de 22, pesquisa estética, atualização da inteligência artística brasileira, consciência criadora nacional) [2]. Nessas duas décadas, se destacam os escritores preocupados com questões políticas e sociais, com aprofundamento da lírica moderna (Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cecília Meireles), e o realismo bruto e a prosa regionalista e social de Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Guimarães Rosa. São temas desses autores “o Nordeste decadente, as agruras da classe média no começo da fase urbanizadora, os conflitos internos da burguesia entre provinciana e cosmopolita”[3]. Insere-se no mesmo contexto da literatura regionalista, com enfoque para a classe média urbana, os romances de sondagem psicológica e de fluxo psíquico, com contos e “romances de personagem” que exploram sentimentos e individualidades no mundo moderno. Lygia Fagundes Telles (1923) e Clarice Lispector são as grandes representantes desses textos. Conforme explica Massaud Moisés: “A literatura intimista e introspectiva, que se defrontara com a ficção regionalista no decênio de 1930, agora exibe uma dimensão surpreendente, que a obra de Clarice Lispector tão bem documenta”[4]. Também, Carlos Mendes de Sousa observa em Lispector uma superação e abstratização do quadro dialético localismo versus universalismo que se impunha no panorama literário moderno brasileiro: “Situando-se numa zona de fronteira, a literatura de Clarice implica a exclusão de qualquer tipo de hierarquização e propõe a instauração de um espaço de errância: não ser de nenhum lugar ou amplamente existir numa gravitação que é de todos os lugares. No universo lispectoriano, a heterogeneidade, a descontinuidade e a instabilidade conduzem-nos a um espaço do entre”[5].


São comuns e centrais nos contos das coletâneas “Laços de Família” (1960), “A Legião Estrangeira” (1964) e “Felicidade Clandestina” (1971) os processos de alteridade e, por eles, a construção de identidade dos narradores e personagens. Explica Regina Pontieri: “A experiência de construção da identidade através do confronto com a alteridade não é apenas recorrente na ficção de Clarice Lispector. É, também, o fio temático condutor que permite vincular entre si os romances, contos e crônicas que compõem o conjunto relativamente vasto de escritos da autora”[6]. Nessas três coletâneas, é comum também, segundo Benedito Nunes, o eixo mimético que “assente na consciência individual como limiar originário do relacionamento entre o sujeito narrador e a realidade”[7]. Concentrando-se em um único episódio que serve de estopim dramático, os personagens desses contos se deparam com momentos de investigação íntima a partir da observação do outro (sendo esse outro, muitas vezes, uma figura marginal ou animal), que pode ser breve, mas que gera um confronto inescapável. Em “Amor” (“Laços de Família”), por exemplo, a protagonista põe em xeque seu papel no mundo com a simples visão de um cego mascando chiclete. Já em “O Búfalo” (“Laços de Família”), a mulher enxerga no animal no zoológico o ódio que sente pelo homem que não a ama. Explica Nádia Battella Gotlib: “[...] a história da literatura de Clarice Lispector pode ser considerada como uma reiterada tentativa de exploração dessas relações de família, a partir da problematização da alteridade, num movimento de diálogo entre ‘eu’ e ‘outro’, em que sempre esses dois lados de cada um, num complexo movimento de indagações por espelhamentos, se contrapõem e se complementam”[8]. Esse momento de revelação é, claro, uma epifania, questão central em Lispector, conforme explica Yudith Rosenbaum: “O momento epifânico é uma experiência crucial na obra clariciana. [...] No plano literário, refere-se à súbita iluminação advinda das situações cotidianas e dos gestos mais insignificantes. O êxtase decorrente de tal percepção atordoante geralmente é fugaz, mas desvela um saber inusitado, uma vivência de totalidade grandiosa, que contrasta com o elemento prosaico e banal que a motivou”[9].


A questão do eu que se confunde no outro e a questão da visão atenta do eu que enxerga espelho e falta no outro, resultando em epifania, podem ser percebidas em dois contos da autora: “O jantar”, escrito em 1946, publicado em 1952 em “Alguns Contos” e, em definitivo, na coletânea “Laços de Família”; e “Encarnação involuntária”, publicado em “Felicidade Clandestina” (1971) como conto, mas escrito em 4 de julho de 1970 como crônica e assim publicado em “A Descoberta do Mundo” (1984). Muitos processos presentes nos contos os aproximam, traçando pontes entre as duas coletâneas da autora, não sem, também, revelar diferenças. Comecemos por “O jantar”[10]. Narrado em 1ª pessoa e com um narrador-personagem masculino (fato que se destaca dos demais contos do livro que trazem, em sua maioria, protagonistas femininas), o narrador-protagonista não consegue desviar os olhos de um homem de cerca de sessenta anos que come em um restaurante. Cada gesto do homem, aos poucos, lhe aumenta o incômodo. Há algo de poderoso na figura bufona. É um homem diante do qual nada resta “senão obedecê-lo”. O narrador está furioso, “quebrado com submissão”, abandonou o garfo no prato, mas não consegue parar de observar, como um voyeur, aquela figura. Eis que surgem brechas na figura vigorosa do velho: o narrador enxerga uma lágrima. Mas o fato só piora a náusea do protagonista. Enquanto o velho continua a comer, inabalável, pois era “um desses velhos que ainda estão no centro do mundo”, ele já não pode mais: “Eu não podia mais, a carne no meu prato era crua, eu é que não podia mais”. O jantar termina com o homem exausto, entregue, desmoronado. Mesmo “chorando por dentro”, ele manteve a força de sua figura que intimida o garçom, que sorve carne e vinho com voracidade. Ele vai embora “ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de nós”. Ao narrador-protagonista, resta o bife sangrento à sua frente que ele não pode mais comer. “Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína”, conclui.


O narrador não consegue suportar a grande diferença que opõe ele ao homem, a diferença que os coloca diametralmente opostos no modo de ser e estar no mundo, no modo de encarar a vida como ser pensante: o homem não perde o apetite. Mesmo sofrendo, mesmo soltando uma lágrima, o homem mantém a fome avassaladora, o homem devora e domina. O jantar é seu conforto. Ele subjuga o mundo, faz este curvar-se sob sua potência. O narrador que observa, não. Diante da potência do outro, a epifania daquele instante no restaurante lhe revela que suas angústias existenciais existem e podem dominá-lo. Ele perde o apetite diante das tragédias da vida. O jantar era seu escape, mas a visão do outro lhe revela sua posição subalterna no mundo, a fragilidade de seu escape e, no fim, a inutilidade dele. Conforme explica José Miguel Wisnik, o conto traz “um narrador masculino, mas com sensibilidade feminina” observando esse homem que “trincha na carne sangrenta as feridas da morte que esconde na alma”[11]. O narrador não tem essa capacidade, rejeitando “a carne e seu sangue”. A figura do velho lhe causa inquietação e o faz rejeitar o que lhe é alheio e desconhecido, mas, também, o que lhe parece duramente familiar nele mesmo. O protagonista parece se deparar com o unheimlich, o inquietante, descrito por Sigmund Freud em 1919: o que inquieta e angustia o eu pode ser uma visão ao mesmo tempo conhecida e desconhecida. A aparição inquietante não é desconhecida, por isso amedrontadora, mas familiar: “[...] pois esse unheimlich não é realmente algo novo ou alheio, mas algo há muito familiar à psique, que apenas mediante o processo de repressão alheou-se dela. O vínculo com a repressão também nos esclarece agora a definição de Schelling, segundo a qual o inquietante é algo que deveria permanecer oculto, mas apareceu”[12].


Em “Encarnação involuntária”[13], novamente uma narradora voyeur que participa da ação narra em primeira pessoa uma experiência de observação consternante. Dessa vez, a observação do outro gera no eu um fenômeno de transformação absoluta, a “encarnação” do título. A narradora logo explica esse estranho fenômeno que não pode controlar, como uma síndrome de nascença: “Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la”. Encarnando o outro que observa, o eu se transforma no outro e pode assim, como confidencia, compreender-lhe os motivos e perdoá-lo. Durante um voo de poucas horas, é a visão de uma velha missionária que acomete a protagonista que, com cansaço e deslumbramento, logo sucumbe à fatal metamorfose. Não demora a arcar “com o peso dessa vida que não conheço”, a sentir os passos vagarosos de “santa leiga”, a ficar pálida e de rosto fino. Se a narradora entrara no avião “amoral”, agora em seu rosto logo “estará impressa a doçura da esperança moral”. Só dali a alguns dias, a narradora explica, ela conseguirá retomar a própria vida. Nesse ínterim, ela vivencia sua epifania, ela entende o outro: “Entendo, entendo. Entendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão”. A narradora entende o que de tão íntimo há naquela figura santa e abnegada. O conto se conclui com toque de humor: a narradora descreve outro desses momentos de encarnação involuntária, episódio do passado, dessa vez ao cruzar com uma prostituta na rua. Ao tentar ganhar um homem pelo seu olhar sedutor de meretriz, falha: o homem lia o “The New York Times” e, além disso, seu perfume “era discreto demais”. Para essa narradora, deixar-se impressionar pelo outro é um ato de compaixão e sabedoria, não uma possibilidade maligna que inquieta e põe em risco a liberdade do eu. Escreveu Clarice na crônica “Ao correr da máquina” (1971), revelando que é como a narradora de “Encarnação involuntária”: “Que fazer, se sinto totalmente o que as outras pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um pouco na minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais [...]”[14].


Para os processos de inquietação e epifania que acometem os protagonistas dos contos, visão e tato, interioridade e fisicalidade, gesto e contemplação se mesclam. Em “O jantar”, a visão do narrador-personagem é a de um espectador na plateia assistindo a um espetáculo coreografado, uma peça de dança. O narrador/espectador, de sua mesa, lugar fixo momentaneamente atribuído a ele naquele recinto, restaurante/teatro, assiste de certa distância aos movimentos compassados do homem/patriarca/ator, que executa seu ato absorto, munido do que seu palco lhe oferece: mesa, talheres, atores coadjuvantes (garçom). Lispector marca no texto os gestos repetitivos desse homem, que tão fixamente prendem a atenção do narrador-observador, com verbos e substantivos que denotam movimento e espacialidade (ou seja, como um dançarino): “levava o garfo à boca”, “e começava a cortá-lo com um movimento inútil de vigor de todo o corpo”, “apanha uma garfada de salada com o corpo todo e come inclinado”, “mas eis que ele faz um gesto”, “fez uma careta de aprovação”, “mas ele se desmoronava em gestos vistos”. Os verbos são de movimento (“levava”, “mastigando”, “crescia”, “batia”, “estalava”), os adjetivos remetem à potência do corpo (“corpulento”, “amplo e sólido”, “grandes mãos”, “violenta potência”, “mãos vigorosas”, “o grande cavalo apoia a cabeça”), os substantivos e adjetivos revelam a potência e grandiosidade da cena que se desenrola (“examinava com veemência”, “movimento inútil de vigor”, “acabado, ruidoso”, “rumorosa ressurreição"): tudo aponta para o dançarino que tem na fisicalidade do corpo e nas marcas faciais suas ferramentas de expressão natural (o homem faz “gestos”, faz “caretas”, “diz com a mímica”). A matéria corporal é imprescindível nesse conto: a matéria do corpo do homem observado; a matéria de suas partes constituintes, como um catálogo técnico da anatomia humana (o narrador cita dedo, mãos, boca, punhos, rosto, cabeça, cotovelos, lábios, dentes, língua, peito, garganta, sobrancelhas, maxilares); a matéria-carne no prato do homem (“a carne no meu prato era crua”); a matéria-carne no prato do narrador-observador, que não consegue olhá-la sem repulsa.


Após o momento epifânico, ao final do texto, o narrador-observador está transformado. Ele se opõe ao ser que por longos minutos se pôs tão detidamente a observar. Não quer ser ele. Simultaneamente, se incomoda com o desejo inconsciente de querer ser forte como ele, de querer ser mais forte que ele. Ao constatar um segredo da vida, ao sentir o que não se pode sentir quando em desatenção no automatismo do cotidiano, ele já não pode comer a carne sangrenta à frente: “Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue”. Ao fim do espetáculo, o que resta é a inquietação, o vazio, o silêncio que contrasta com o ruidoso jantar. E a fome. Dois corpos, um para cada lado, embora psiquicamente entrelaçados. Em “Em memória dos sentimentos deles”, Susan Sontag aproxima o ato de dançar ao ato de comer, vendo na repetição dos gestos com os talheres, na repetição do ato de mastigar, a dança: “Uma ideia de ordem. Primeiro uma coisa, depois outra. Então fica cheio. Então está terminado — a barriga saciada, as pernas e os braços pesados. Em seguida um intervalo decente: então, de novo. Tudo de novo. Tudo de novo. Eles nos fazem lembrar que vivemos na casa-corpo. Viver ‘em’ um corpo. Mas onde mais poderíamos viver?”[15]. Clarice Lispector, ao pensar a alteridade em seus contos, diz coisa parecida, mesclando o corpo do eu com o corpo do outro: “Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.”[16]


Em “Refrão da Fome”, romance de passagens autobiográficas e ensaísticas, o escritor franco-mauritano Jean-Marie Gustave Le Clézio conta um episódio que remete diretamente à visão do espetáculo de dança enquanto visão epifânica e o esvaziamento, “a fome”, que disso resulta. Novamente, o paralelo com a experiência do narrador de “O jantar” é evidente:


“Os últimos compassos do Bolero são tensos, violentos, quase insuportáveis. A música sobe, enche a sala, todo o público agora está de pé, o olhar voltado para o palco onde os bailarinos rodopiam, acelerando seus movimentos. Alguns soltam exclamações e suas vozes são abafadas pelas batidas do gongo. Levados pelo delírio, Ida Rubinstein e os dançarinos são títeres. Todas as flautas, clarinete, trompas, trompetes, saxofones, violinos, tambores, címbalos e tímpanos estão no auge da tensão, já quase a ponto de romper-se, de estrangular-se, de rebentar suas cordas e suas vozes, de quebrar o silêncio egoísta do mundo. Minha mãe, quando me contou a estreia do Bolero, falou de sua emoção, dos gritos, bravos e assovios, do tumulto reinante. [...] muito tempo depois, minha mãe me confidenciou que aquela música mudara sua vida. Agora entendo por quê. Sei o que significava para sua geração essa frase repetida como a de um realejo, imposta pelo ritmo e pelo crescendo. O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma cólera, de uma fome. Quando acaba em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes aturdidos.”[17]


O Bolero de Maurice Ravel (criado em 1928), em um crescendum, é uma melodia uniforme e repetitiva composta de um único movimento que deve durar teoricamente catorze minutos e dez segundos. O fim do espetáculo, que ganha corpo conforme a dinâmica de dançarinos e orquestra se exalta, dissolvendo a repetição, deixa os espectadores aturdidos sob o silêncio. Assim resulta o narrador de “O jantar” após ser espectador do velho glutão dançarino que tanto o incomoda e o transforma. Os gestos repetitivos do outro (garfo à boca, mastigação, ato de engolir, ato de fechar os olhos e arfar) crescem rumo aos acontecimentos centrais (o narrador vê a lágrima em seu olho e percebe sua exaustão e luta interna) que resultam em asco, cansaço e náusea: “Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea. Tudo me parece grande e perigoso”, diz o narrador do jantar. Em “Encarnação involuntária”, é a vez do narrador-espectador sair da posição passiva e se transformar no ator, no dançarino. Essa mulher que observa a missionária no avião e nela se transforma precisa coreografar os próprios passos do dançarino que observava de modo a compreender estes passos. Ela deve aturdir a si própria. Ela se torna “delicada”, passa a andar com os passos “de santa leiga”, vê sua máscara mudar (agora, não tem pintura nos lábios e é pálida), precisa fingir esse novo personagem que dela se apossa (lê uma revista, como a missionária lê a Bíblia, segura suas “imaginárias saias longas e cinzentas contra o despudor do vento”).


Se em “O jantar” o narrador rejeita a visão que lhe acomete, luta para não se deixar transformar, não se deixar perder (afinal, reconta suas partes em desespero para, aliviado, constatar: “Mas eu sou um homem ainda”), não deixar-se dissolver, todavia não consegue conter por completo os efeitos que o patriarca causa em seu eu constituído, não consegue sair impune da experiência do restaurante, que o força a novos estados mentais, a novas constatações graves (epifanias), em “Encarnação involuntária” o caminho é oposto: o narrador deixa-se transformar, com certo gosto, no outro. A visão do outro, involuntariamente, o arrebata por completo (a epifania é tamanha que o próprio ser, sob o estrondo da epifania, já é outro, não pode deixar de ser outro) e, por longo período, não sem certa satisfação e prazer, apesar de desejar o retorno, o eu é outro. Lá, na mesa de jantar, o outro prenuncia, ao mostrar sua potência, que haverá uma batalha. O eu travará uma luta para entender o incômodo que seu ato voyeurista causa. Aqui, no avião, depois na rua, a batalha é perdida imediatamente. Logo a narradora sucumbe à vida que “por uns dias” vai viver. Ela chega a implorar (“não quero ser essa missionária!”), mas o apelo é quase burocrático. Ela sabe desde sempre que “era inútil” resistir. Em ambos os contos, narrador e objeto se aproximam e se repelem via identificações e oposições. Sem esse jogo magnético, não haveria ação, desenvolvimento e epifania. Regina Pontieri explica: “[...] modo como ‘eu’ e ‘outro’ se relacionam numa dinâmica de oposição e identificação simultâneas. Ou seja: não só os pólos do ‘eu’ e do ‘outro’ não se excluem como, ao contrário, cada um é condição de possibilidade de existência do outro [...] Para Sartre, ‘o outro não é somente aquele que eu vejo, mas aquele que me vê. Eu viso o outro enquanto um sistema ligado de experiências fora de minha possibilidade de alcance, no qual eu figuro como um objeto entre outros’”[18].


Em ambos os contos, por mais que o fenômeno do narrador-personagem voyeur que observa o outro -- e dele parta em direção à jornada narrativa momentânea e ao momento epifânico -- resulte em diferentes dinâmicas (absorção parcial do eu pelo outro, com rejeição e náusea como resultado, em “O jantar”; absorção total do eu pelo outro, que trocam de papéis, em processo empático, de curiosidade e respeito em “Encarnação involuntária”), os textos se ligam pela necessidade básica do corpo físico, constituído enquanto presença física no mundo, de existir e estar. Sem a materialidade, não há visão e observação, portanto não há entendimento e epifania, não há inquietação e náusea, não há compaixão e transformação. Em ambos os contos não há toque, eu e outro nunca se ligam fisicamente, “epidermicamente”, porém é somente pelo corpo e suas células organizadas, postas em movimento, que a ligação eu-e-outro se torna real, ainda que mental. Em “O jantar”, a dança do patriarca que tudo deglute com voracidade consome a atmosfera do restaurante, é respirável e palpável. A visão é o corpo posto em ação e prática, é a matéria viva que engole e arfa, que sua e pinga, que se compõe e se recompõe do bife à sobremesa. À distância, o narrador voyeur é consumido pelos seus sentidos, acachapantes: o que seus sentidos captam -- visão, audição, paladar, olfato -- é tão massivo que disso resulta uma massa tocável que se reconstitui nele próprio e em seu prato, bife sangrento. Apartado, o narrador se digladia com o outro corpo de modo a sair vivo e íntegro da experiência epifânica. O corpo do outro lembra seu próprio corpo, a fisicalidade vulgar do outro, despreocupada, faz o eu reagir com ódio e asco, que entendendo seu lugar no mundo e já não pode sair do restaurante da mesma maneira que entrou.


Em “Encarnação involuntária” o processo é o mesmo, mas é direto e automático: os cinco sentidos do outro são tão potentes que se tornam os cinco sentidos do eu e as duas instâncias se fundem. Toda a materialidade do outro passa a existir na materialidade do eu. A partir daí, a visão dos outros para si (o eu transformado em outro, transformado assim em novo eu) passa a ditar a existência. Se a narradora olhava a beata e seu andar, seu rubor facial e seus trejeitos (“magreza e delicadeza extremamente polida”, que ruboriza à aproximação de homens), ao encarná-la o eu se torna outro e já não pode, de dentro de sua cabeça, dessa visão em primeira pessoa, observar seu próprio andar, seu próprio rubor facial. “Entendo, entendo”, diz a narradora, mas agora entender o outro já não é possível porque o Outro é Eu, e, se sabe de seus mapas mentais, agora também necessitará da visão externa, alheia, de outro eu, para se constituir como realidade no mundo que, antes ao fundo, como o cenário de uma peça, agora a cerca e limita. Somente com a vivência demorada é que a narradora poderá voltar a si, reencontrar-se a si, com novo entendimento não só do outro, como de si própria: “Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. [...] E quando o fantasma de mim mesma me toma -- então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra”. Como ambos os processos voyeurísticos dos dois contos evidenciam, visão e corpo, mão e boca, se fundem no processo de epifania e alteridade descrito por Clarice que permite ora entender o outro, ainda que com incômodo e repulsa, ora ser o outro, resultando ao final de tal fenômeno em uma nova visão interna, do que é Ser na individualidade, mas também em uma nova visão externa, do que é Ser o outro na coletividade. Os personagens de “O jantar” e “Encarnação involuntária” saem de suas experiências com distâncias abolidas e com seus corpos constituídos assimilados. O ato de encarnar (fazer-se carne e humano; penetrar o espírito num corpo; dominar o espírito de alguém) cria a ponte entre os dois contos da autora. Como evidencia Regina Pontieri Pontieri:


“Nas cenas claricianas de confronto entre eu e outro sobressai ainda, além do aspecto de reversibilidade da relação, um outro traço característico: a natureza eminentemente visual e por vezes também gustativa do contato. Em muitos dos casos citados encena-se o trabalho mais ou menos intenso e demorado de um olhar examinando seu objeto. Em alguns deles, esse gesto estabelece liames significativos com a atividade de comer. [...] Pois se o corpo é a raiz, então o ato de comer, mais do que o de tocar, é o operador por excelência da assimilação entre sujeito e mundo e entre eu e outro. A mão laboriosa, tocando a carne das coisas, abole a distância que vai do olhar ao olhado. Mas entre a mão que toca e aquilo que ela toca se mantém, fina que seja, a película de garantia de separação. Pelo trabalho da boca voraz, o que se dá não é só superação da distância. É, ainda, assimilação”.[19]


NOTAS


1. BORGES, Jorge Luis. O Outro, o Mesmo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Trad. Heloísa Jahn. p.57


2. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 51ª edição. São Paulo: Cultrix, 2017. p.409


3. Ibid., pp.410-412


4. MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira Através dos Textos. 29ª edição. São Paulo: Cultrix, 2012. p.567


5. SOUSA, Carlos Mendes de. “A íntima desordem dos dias” in LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. pp.127-154. Lisboa: Cotovia, 2006. p.131


6. PONTIERI, Regina Lúcia. “Visões de Alteridade: Clarice Lispector e Maurice Merleau-Ponty”. São Paulo: Revista USP, Nº44, pp.330-334, dezembro/fevereiro, 1999/2000. p.330


7. NUNES,Benedito. O Drama da Linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Ática, 1989. p.83


8. GOTLIB, Nádia Battella. “Os difíceis laços de família”. São Paulo: Cadernos de Pesquisa - Fundação Carlos Chagas, Nº 91, pp.93-99, novembro, 1994. p.95


9. ROSENBAUM, Yudith. Clarice Lispector. São Paulo: Publifolha, 2002, (Série Folha Explica). pp.68-69


10.LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. pp.201-205


11. WISNIK, José Miguel. “Diagrama para uma Trilogia de Clarice”. Curitiba: Revista Letras, UFPR, Nº 98, pp.282-307, julho/dezembro, 2018. p.290


12. FREUD, Sigmund. “O inquietante”, in Obras Completas - Vol. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.360


13. LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. pp.428-430


14. LISPECTOR, Clarice. “Ao correr da máquina”, in A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2020 (ebook). p.378


15. SONTAG, Susan. “Em memória dos sentimentos deles”, in Questão de Ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p.209-210


16. LISPECTOR, Clarice. “Em busca do outro”, in A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2020 (ebook). p.139


17. LE CLÉZIO, Jean-Marie Gustave. Refrão da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p.239-240


18. PONTIERI, op.cit., pp. 332-333


REFERÊNCIAS


BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 51ª edição. São Paulo: Cultrix, 2017.


FREUD, Sigmund. “O inquietante”, in Obras Completas - Volume 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


GOTLIB, Nádia Battella. “Os difíceis laços de família”. São Paulo: Cadernos de Pesquisa - Fundação Carlos Chagas, Nº 91, pp.93-99, novembro, 1994.


LE CLÉZIO, Jean-Marie Gustave. Refrão da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2009.


LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2020, (ebook).


LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.


MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira Através dos Textos. 29ª edição. São Paulo: Cultrix, 2012.


NUNES, Benedito. O Drama da Linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Ática, 1989.


PONTIERI, Regina Lúcia. “Visões de Alteridade: Clarice Lispector e Maurice Merleau-Ponty”. São Paulo: Revista USP, Nº44, pp.330-334, dezembro/fevereiro, 1999/2000.


ROSENBAUM, Yudith. Clarice Lispector. São Paulo: Publifolha, 2002, (Série Folha Explica).


SONTAG, Susan. “Em memória dos sentimentos deles”, in Questão de Ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.


SOUSA, Carlos Mendes de. “A íntima desordem dos dias” in LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. pp.127-154. Lisboa: Cotovia, 2006.


WISNIK, José Miguel. “Diagrama para uma Trilogia de Clarice”. Curitiba: Revista Letras, UFPR, Nº 98, pp.282-307, julho/dezembro, 2018.

 

Citação: DEARO, Guilherme. "O outro, o mesmo: o narrador voyeur, a experiência epifânica e a potência do corpo em Clarice Lispector". São Paulo: FFLCH/USP, dezembro de 2020.







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