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Guilherme Dearo

Sem forças para continuar: personagens em Samuel Beckett

Atualizado: 28 de jun.

A construção dos personagens em O Fim e Esperando Godot, de Samuel Beckett

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989), que vivia na França e participara da Resistência à ocupação nazista, opta por trocar o inglês, sua língua materna, pelo francês. Naquela língua, ele escrevera obras em prosa como os romances Murphy (1938) e Watt (1943). Entre 1945 e 1946, ele produz quatro novelas, “Premier Amour”, “L’Expulsé”, “Le calmant” e “La fin”, novelas que para muitos estudiosos prenunciam os seus temas e métodos formais na famosa trilogia de romances do pós-guerra, Molloy, Malone Morre e O Inominável (BERRETTINI, 2004, pp. 42-43). “O fim” é publicada em uma primeira versão em 1946, na revista Les Temps Modernes, de Jean Paul Sartre. Posteriormente, as três últimas novelas citadas são publicadas em 1955 em Paris, na obra Nouvelles et Textes Pour Rien.


Esses textos curtos inauguram um novo estilo em sua prosa. Diz Lívia Bueloni Gonçalves: “O típico narrador em primeira pessoa beckettiano, caracterizado pelo discurso instável, movido a questionamentos e impasses surge pela primeira vez com essas narrativas” (2009, p. 10). Esse narrador e a adoção do francês estão intimamente ligados: “A partir desses relatos, Beckett abandona o inglês, com a justificativa de que precisava ‘empobrecer-se, escrever sem estilo’, tarefa que considerava impossível na língua materna” (GONÇALVES, 2009, p. 10). Como explica Fábio de Souza Andrade,


A decisão de adotar o francês como língua literária — língua que fazia parte de seu cotidiano de exilado voluntário, que preferira “a França em guerra à Irlanda em paz” — corresponde, então, ao desejo de abraçar um novo território expressivo, em que a solidão, a miséria e o fracasso saltassem ao primeiro plano (...). (2006, p. IX)


A novela “O fim” traz uma narração em primeira pessoa cujo personagem, entende-se, é o mesmo das outras novelas, “O expulso” e “O calmante”. Há um hiato entre um tempo dos acontecimentos e o tempo da narração. Velho, errante, é avesso à interação humana e vaga por uma cidade e campo que pouco reconhece. Após ser expulso de uma instituição de repouso, com um tanto de dinheiro e roupas que não lhe servem adequadamente, tenta encontrar abrigo. Ora abriga-se da chuva, ora consegue pagar adiantado por uma morada razoável, mas descobre que foi enganado e acaba novamente expulso. Em sua errância, divide espaço com um porco, pede dinheiro nas ruas, encontra abrigo em uma gruta, onde há um homem e seu asno, e finalmente se abriga em um local infestado de ratos, onde encontra um barco que transforma em cama (e, depois, em uma espécie de caixão), até ser levado pelas águas e, por fim, tomar um calmante.


Em comum às três novelas, há “protagonistas anônimos, sem rosto, errantes, solitários, em choque com o mundo — o ‘herói’ beckettiano, em constante degradação, e em que a palavra suscita dúvidas, já que pode encobrir a realidade” (BERRETTINI, 2004, p. 44).


Esperando Godot (no primeiro original, em francês, En attendant Godot) foi uma peça composta entre 9 de outubro de 1948 e 29 de janeiro de 1949, mas só publicada pela primeira vez em 1952 e encenada, em Paris, pela primeira vez em 1953, sob direção de Roger Blin. Na peça, Beckett apresenta a dupla Vladimir e Estragon, que, à espera de um tal de Godot, dialogam, monologam e se relacionam com os personagens Pozzo, Lucky e Menino. Estragon e Vladimir (ou Gogô e Didi), vagabundos, parecem conviver há décadas. Em uma relação conturbada, tentam passar o tempo com conversas repetitivas e pouco objetivas. No primeiro ato, esperam Godot, que não vem, mas envia mensagem através do Menino: virá amanhã, garante. No segundo ato, já não sabem se o hoje é o amanhã de ontem ou se o ontem foi muito tempo atrás.


Sobre a peça, analisa Fábio de Souza Andrade:


Nessa obra em que a simetria imperfeita, forma particularmente cara a Beckett, encarna-se numa multiplicação de duplos ligeiramente discrepantes (dois atos, dois dias, dois pares: Didi e Gogô, Pozzo e Lucky), a indefinição do espaço — um meio do caminho na terra de ninguém, demarcado unicamente pela presença insistente de uma árvore —, a incerteza da espera anunciada no título, a ausência de um quadro de referências naturalistas e a falta de consequência prática dos diálogos despertaram várias leituras alegóricas. (2021, pp. 123-124)


Beckett dizia que havia escrito Esperando Godot em francês “para escapar da ‘horrível prosa’, à qual vinha se dedicando sem êxito; (...) A passagem do romance ao teatro se explicaria então por uma deliberada intenção de divertir, associada à frustração de não ser lido como romancista” (BERRETTINI, 2004, p. 74). A peça, diante de diálogos absurdos e falta de grandes acontecimentos,


Falava, de maneira farsesca, da miséria do homem, do absurdo da condição humana, das dificuldades do homem moderno, sem absoluto, sem Deus, completamente desamparado num universo hostil, desprovido de sentido. (Ibid, p. 162)


Foi o sucesso da peça que catapultou Beckett de sua relativa obscuridade à fama internacional, o que lhe traria uma posição de ícone da literatura e da arte dramática do século 20 e um prêmio Nobel da Literatura (McDONALD, 2021, p. 136). A obra “revelou possibilidades ainda não exploradas no meio, sobretudo no que tange ao poder dramático da inação, do silêncio e da espera” (Ibid., p. 136). Godot permanece um mistério diante de uma peça com “histórias jamais concluídas e perguntas nunca respondidas — uma frustração para quem gostaria de ler mensagens ou tópicos claros” (Ibid., p. 150). Diz Andrade:


Houve quem buscasse um deus oculto em Godot; outros, uma eterna e absurda condição humana; alguns ainda procurarão alusões mais diretas a um contexto histórico determinado. De fato, parece difícil negar que muito da experiência de Samuel Beckett ao longo da Segunda Guerra — na clandestinidade, tomando parte dos esforços da Resistência, ao sul da França ocupada, vivendo na expectativa aberta, diária, pelo fim do conflito — tenha se comunicado à angústia das personagens. (2021, p. 124).


Se compararmos o personagem sem nome de “O fim” e a dupla principal de Esperando Godot, Vladimir e Estragon, encontraremos semelhanças e diferenças formais e temáticas na construção das personagens: como elas se apresentam aos leitores e espectadores, como elas se descrevem e são descritas, como reagem ao mundo que as cerca. Se existem algumas continuidades temáticas entre o despossuído errante da novela e os vagabundos da peça, há diferenças de construção por conta da forma (dramática, na peça; e prosa breve com discurso em primeira pessoa, na novela).


Em “O fim”, o personagem é típico de Beckett: “A repulsa pela vida social, seja provocada pela expulsão, segregação forçada, ou consequência de exílio auto-imposto, é marca comum das personagens que povoam a ficção beckettiana” (ANDRADE, 2001, p. 32). Em primeira pessoa, ele narra os fatos enquanto eles acontecem, desde o momento derradeiro quando é expulso do asilo onde estava. Se há falas de outras pessoas, ele as reproduz em um discurso direto livre. Se tudo vem diretamente da voz do protagonista, somos obrigados a acreditar na subjetividade de suas lembranças — ou delas suspeitar: elas podem estar corretas ou incorretas, precisas ou falhas.


Do que sabemos dele, só o que nos diz. Nome, não há. Das suas roupas, sabemos que tinha calça, paletó e chapéu quando foi expulso pela primeira vez, no início da narrativa. Deve haver algo em seu crânio, pois “Mas eu não podia andar sem chapéu, visto o estado de meu crânio” (p. 54). [1] Ele volta a uma cidade que frequentara no passado, pois diz “Na rua fiquei perdido. Fazia muito tempo que não punha os pés nessa parte da cidade, e ela me parecia bem mudada” (p. 57). Há pistas sobre seu passado no testemunho que dá, pois em determinado momento cruza com seu filho (“Um dia avistei meu filho. Com uma pasta debaixo do braço, ele apertava o passo.” - p. 66) e com um outro conhecido (“Um dia encontrei um homem que havia me conhecido em outros tempos.” p. 66).


O olhar do outro é essencial para sabermos mais sobre sua aparência velha e suja. Sem o seu relato sobre como os outros o observavam, pouco saberíamos. Dupla camada, portanto: o entendimento dele sobre o olhar daqueles que o observam. Sabemos de seu estado, pois não consegue pegar carona nas charretes que passam (p. 70):


“Eu devia estar mudado desde que fora expulso do porão. O rosto especialmente devia ter atingido seu climatério. O sorriso humilde e ingênuo já não vinha, nem a expressão de miséria cândida, contendo as estrelas e os fusos. Eu os chamava, mas não vinham. Máscara de velho couro sujo e peludo.”.


Em outro momento, um homem que pregava Marx aos passantes o puxa para fazer seu ponto (p. 75): “Olhem esse maltrapilho, clamava, esse dejeto. (...) Velho, piolhento, podre, pronto para o lixo.”. Ele também tem certo escracho: fala em peidos, em coçar o corpo todo, principalmente o cu, onde “lhe dá mais prazer”.


De sua mente, temos pistas. Em seu estado atual, prefere a solidão (p. 59): “Tinha vontade de ficar de novo enfurnado, num lugar fechado, vazio e quente, com luz artificial, um lampião a querosene se possível, envolto por um quebra-luz rosa, de preferência. Alguém viria de tempos em tempos assegurar-se de que eu estava bem e não precisava de nada. Havia muito tempo que não tinha realmente vontade de coisa alguma e o efeito sobre mim foi horrível.”. Se se encontra num estado de abandono, sua mente ainda parece funcionar. Ele é capaz de reflexões autorreferenciais complexas, tendo noção da linguagem e suas falhas (como em “Saber que eu tinha um ser, por mais fraco e falso que fosse, fora de mim, tinha sido outrora o dom de me comover. A gente se torna selvagem, é inevitável. E às vezes nos perguntamos se estamos no planeta certo. Até mesmo as palavras nos abandonam, não é preciso dizer mais nada.” - p. 79) e é até mesmo irônico e bem-humorado quando é confrontado com o tal do homem que prega Marx, que o trata com extrema condescendência e inferioridade. Ao se afastar dele, pensa (p. 76): “Devia ser um fanático religioso, não achava outra explicação. Talvez tivesse escapulido do manicômio. Tinha uma cara boa, um tanto corada”.


Sobre esse personagem, que parece ecoar também em “O expulso” e “O calmante”, diz Andrade (2006, p. X):


Das Novelas, emerge um narrador-protagonista irônico, despossuído e solitário, perguntando-se pelo seu lugar, desmentindo-se a cada passo, errante a contragosto e a duras penas, mas incapaz de se calar ou sossegar. A instabilidade de sua voz, sintomática, é a própria literatura de nosso tempo, materialmente sem teto, espiritualmente sem pátria. Na brevidade dessas narrativas, pode-se flagrar sua gênese, instantâneos de sua queda original. A um só tempo produto final e resíduo da razão iluminista e cartesiana, a voz excêntrica que ali se esboça e se corrige a cada etapa tornou-se a qualidade inconfundível do (anti-)herói beckettiano, movido a fracassos.


A dupla de despossuídos Vladimir e Estragon na peça Esperando Godot, por sua vez, não narram em primeira pessoa suas histórias. O ato de fabulação interna inexiste, sendo que suas vozes nos vêm de maneira direta, como expressões vocais, em diálogos e monólogos. Eles só existem enquanto corpos presentes no palco, à vista dos espectadores; só existem enquanto corpos que usam suas vozes para falar, em um aqui-agora único, o que vem direto de suas mentes no tempo presente. Ora essas vozes revelam algo de si mesmas, ora revelam algo do outro que está à frente. As vozes de Vladimir e Estragon são fracas. Hesitantes, curtas, confusas, repetitivas, sem grandes certezas, embora existam momentos de lucidez e complexidade. O diálogo do teatro de Beckett “se caracteriza pelo empobrecimento, pelo depauperamento, isto é, pela presença de falas curtas em que subsistem os traços do diálogo tradicional” (BERRETTINI, 2004, p.86), em uma linguagem “que aparece cortada, em fragmentos, repetidos, e não na sua elegante fluência, na sua tranquila correção” (Ibid. p. 86).


Ambos têm uma memória ruim e não sabem se estão no lugar certo esperando por Godot, se a árvore do local é a correta, se o dia do tal encontro está correto. Se parecem abandonados, indigentes, não se definem como mendigos, ao menos não tão descaradamente, como frisa Vladimir (p. 52). Das suas características físicas, alguns elementos surgem da maneira única do teatro, visualmente. No palco, com o texto sob encenação, visualmente. Na leitura da peça, pelas rubricas anotadas. Sabemos, por exemplo, por tais rubricas, que Estragon veste botas, enquanto Vladimir anda a passos curtos e duros e tem um chapéu. De Estragon, no início da peça, sabemos que dormiu numa vala e foi espancado por um grupo. Sobre essa linguagem múltipla do teatro, diz Berretini (Ibid., pp. 74-75):


Como nota Barthes, o teatro é uma espécie de máquina cibernética, em repouso, oculta atrás de uma cortina, e que ao ser descoberta, põe-se a emitir aos espectadores mensagens simultâneas, se bem que em ritmo diferente — informações vindas do cenário, da iluminação, do lugar ocupado pelos atores, de seus trajes e maquiagem, e de seus gestos e palavras, numa autêntica “polifonia informacional”. Não há, pois, apenas a linguagem verbal.


Assim como em “O fim”, pelo olhar dos outros personagens, também descobrimos coisas da dupla em foco. Pelos comentários de Pozzo, por exemplo, entendemos que eles são velhos (p. 38) [2]: “Vocês são severos. (A Vladimir) Sem querer ser indiscreto, qual é a sua idade? (Silêncio) Sessenta? Setenta?”. Tal informação é corroborada por falas da dupla, remetendo ao passado, como “Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que eu sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900.” (Vladimir, p. 16), ou “De mãos dadas, pular do alto da torre Eiffel, os primeiros da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam nem subir.” (Vladimir, p. 16). A dupla também reflete sobre a passagem do tempo (p. 70). Estragon indaga “Há quanto tempo estamos juntos o tempo todo” e Vladimir responde “Não sei. Uns cinquenta anos, eu acho”. E é Pozzo, novamente, que revela mais coisas da dupla Didi e Gogô. Ele pergunta “Qual de vocês fede assim?”, ao que Estragon esclarece: “Ele tem mau hálito, eu, chulé” (p. 61).


Sabemos, também, que o tema de suicídio está na mente dos personagens, que falam do assunto a todo momento, indicando que querem tentar o ato no presente. Já na página 25, Estragon sugere: “E se a gente se enforcasse?”. Mais para frente, Estragon olha para a árvore e pensa “Pena que não temos um pedaço de corda” (p. 69). Já no segundo ato, ao final da peça, refletem mais uma vez sobre a opção do suicídio, pensando num cinto, procurando um pedaço de corda. Quando Vladimir diz que eles terão de voltar amanhã, Estragon conclui: “Então traremos um pedaço de corda” (p. 119).


Assim, Beckett se vale de estratégias distintas para apresentar o personagem misterioso de “O Fim” e a dupla Didi e Gogô da peça. Na novela, a caracterização se dá em primeira pessoa, através de um relato que pode estar falseado ou não. Há poucos detalhes, há lacunas, há hesitações. A falta de precisão do narrador-personagem é consequência direta do modo como ele próprio se coloca. Há subjetividade na escolha do que narrar, e também falhas, coisas que fogem ao alcance do personagem. Analisa Lívia Gonçalves (2009, p. 20):


Com a adoção do francês e do narrador em primeira pessoa, muda-se radicalmente a maneira de caracterização dos personagens, no sentido da eliminação de traços de identificação precisa. A caracterização do protagonista é uma exceção.


Já para Estragon e Vladimir em Esperando Godot, somente o que podem expressar, o que é parco, fraco, pode definir suas existências. Se não conseguem falar, se a linguagem é falha, se a expressão verbal não basta, ficam descaracterizados, e até com suas existências sob risco. Analisa Andrade (2002, p. 12):


Os vagabundos beckettianos, submetidos a crises paralelas do corpo e da máquina pensante, andarilhos forçados tropeçando nos percalços da existência lumpen, incapazes de comunicar-se com o restante da humanidade, são contemporâneos da ficção e drama destes anos. Portadores dos despojos da civilização burguesa, dos restos do otimismo da razão iluminista convertidos em bugiganga, passam e repassam sua existência vazia de significados por um implacável crivo analítico, herança cartesiana. O efeito deste alto poder de abstração consubstanciado no mais instintivo e simples é avassalador, cômico e inquietante a um só tempo.


Desse modo, para além da fraqueza da própria voz, é o olhar de um outro que pode trazer sobrevida e alguma validação, ainda que mínima. Em dois momentos, quando encontra o Menino, que veio dar o recado de Godot, Vladimir implora por esse olhar alheio, que reafirmaria sua existência que evapora (p. 68). O Menino diz “O que eu digo ao senhor Godot?”, e Vladimir pede: “Diga… (hesita) diga que nos viu. (Pausa) Você viu mesmo, não viu?”. No segundo ato, novamente Vladimir ao Menino (p. 117): Diga que… (interrompe) diga a ele que me viu e que… (reflete) que me viu. (Pausa. Vladimir avança, o menino recua, Vladimir para, o menino para) Mas diga uma coisa, você tem certeza de que me viu? Não vai me dizer amanhã que nunca me viu?”.


O tema da desistência da vida, ou seu inevitável fim, é comum entre os três personagens e as duas narrativas. Em ambos os casos, a questão do “continuar”, ou do “não poder continuar” surge de maneira direta. Eles estão cansados, e acabar com tudo parece ser uma saída. Em “O fim”, a fala cansada do narrador é presente. Logo na inauguração da narrativa, o personagem fala sobre o “continuar”, como eufemismo para viver (p. 53): “Eles me vestiram e me deram dinheiro. Eu sabia para que o dinheiro devia servir, devia servir para me fazer sair do lugar. Quando eu o tivesse gastado deveria arranjar mais, se quisesse continuar”. O fim da vida é evocado por ele em “Eu não trabalhava todos os dias. Quase não tinha despesas. Conseguia até economizar, para os dias derradeiros” (p. 76) ou em “Eu sabia que logo estaria acabado, então eu fazia o papel, você sabe, fazia o papel de — como dizer, não sei” (p. 78). A fala final do personagem é a mais clara nesse sentido: “Eu pensava vagamente e sem remorso no relato que por um triz não fiz, relato à imagem de minha vida, ou seja, sem coragem de terminar nem força de continuar” (p. 82).


O mesmo aparece em Esperando Godot. Vladimir, que parece o mais melancólico e resignado da dupla, diz a Estragon coisas como “O último minuto… (Medita) Custa a chegar, mas será maravilhoso.” (p. 17) ou “Às vezes até sinto que está vindo. Então fico todo esquisito. (...) Como se diz? Aliviado e ao mesmo tempo… (busca a palavra) apavorado.” (p. 17). Estragon não fica muito atrás. Ao final da peça, também revela seu cansaço, ecoando o “continuar” de “O fim”. Estragon chama por Didi, que pergunta o que quer. Estragon responde: “Não posso continuar assim”. Vladimir retruca: “É o que todos dizem” (p. 120). Nesse limiar de desistência, não se mexem: continuam a esperar Godot.


Os rompantes de sagacidade mental também aparecem nas duas histórias. Como já foi dito, a narrativa criada pelo personagem de “O fim”, ainda que confusa, como que perdida em tempo e espaço indefinidos, demonstra momentos de agudezas, como quando ele comenta com certa força de espírito a situação do homem que fala de Marx em praça pública ou quando reflete sobre sua condição: “A gente se torna selvagem, é inevitável. E às vezes nos perguntamos se estamos no planeta certo. Até mesmo as palavras nos abandonam, não é preciso dizer mais nada”.


O mesmo faz Vladimir na peça, quando demonstra momentos de profundidade e grande raciocínio. A Estragon, ele diz coisas como:


“(...) Não é todo dia que precisam de nós. Ainda que, a bem da verdade, não seja exatamente de nós. Outros dariam conta do recado, tão bem quanto, senão melhor. O apelo que ouvimos se dirige antes a toda a humanidade. Mas neste lugar, neste momento, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel.” (p. 101)


Ou:


“O certo é que o tempo custa a passar, nestas circunstâncias, e nos força a preenchê-lo com maquinações que, como dizer, que podem, à primeira vista, parecer razoáveis, mas às quais estamos habituados. Você dirá: talvez seja para impedir que nosso entendimento sucumba. Tem toda a razão. Mas já não estaria ele perdido na noite eterna e sombria dos abismos sem fim? É o que me pergunto, às vezes. Está acompanhando o raciocínio?” (p. 102).


Sobre tais momentos analíticos, reflete Andrade (2001, pp. 33-34):


Naqueles que povoam o universo beckettiano, um corpo decrépito, máquina gasta e desconjuntada, alia-se a um espírito analítico extremamente aguçado, herdeiro dos despojos de séculos de racionalismo ocidental, portador de farrapos de erudição (...). Sob o rigor do discurso exaustivo que as personagens dedicam ao exame destes restos, recolhidos ao longo de uma vida insignificante, recordada com dificuldade, disfarça-se o assunto permanente da ficção beckettiana: um movimento analítico voltado para dentro de si mesmo, um esquadrinhamento da interioridade destroçada, corporificada nos destroços.


Para criar seus personagens, o narrador de “O fim” e os vagabundos Vladimir e Estragon de Esperando Godot, Beckett precisa se valer de recursos distintos, o dramático e o da prosa. Sobre a personagem dramática tradicional, explica Décio de Almeida Prado em “A personagem no teatro”:


A personagem teatral, portanto, para dirigir-se ao público, dispensa a mediação do narrador. A história não nos é contada mas mostrada como se fôsse de fato a própria realidade. Essa é, de resto, a vantagem específica do teatro, tornando-o particularmente persuasivo às pessoas sem imaginação suficiente para transformar, idealmente, a narração em ação: frente ao palco, em confronto direto com a personagem, elas são por assim dizer obrigadas a acreditar nesse tipo de ficção que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos. (2014, p. 85)


No drama moderno, contudo, escritores como Samuel Beckett estão interessados em quebrar o efeito de verossimilhança e colocar em análise e crítica os elementos literários clássicos, como os personagens. Beckett não está interessado em construir personagens verossímeis e criar efeito de ilusão nos espectadores. No palco, personagens e seres humanos estão em crise, numa crise da linguagem e da expressão. Se o personagem dramático precisa agir e dialogar para existir, em uma peça onde os personagens mal agem ou onde se expressam com sofreguidão eles estarão ali criticamente e não serão referência de um personagem “vivo” capaz de ilusão e que seja “realista”. O que interessa é a crítica humana. Diz Fábio de Souza Andrade em “Matando o tempo: o impasse e a espera” (2002, p. 12):


Se o elemento fundamental do teatro é ação, o que se passa se os protagonistas são exemplos acabados da ineficácia da ação, optando, forçada ou voluntariamente, pelo imobilismo, fazendo o elogio da acídia e da indolência, não apenas como mal menor, mas como estratégia de sobrevivência (a única possível)?


A peça de Beckett traz, assim, um teatro antidramático onde o diálogo não é conflituoso, mas apenas mata o tempo (num tempo-espaço, vale ressaltar, totalmente indefinido). Passivos e sem conflitos, essas personagens acabam ganhando contornos pouco claros, têm problemas em se autodefinirem pela palavra e pelo ato, não iludem ou refletem, mas evidenciam a crítica. Diz Andrade: “Estratégia para camuflar a mínima margem de ação das personagens, os diálogos reduzem-se a rotinas que encobrem a dificuldade de passagem do tempo, hábito ao qual se aferram em vista da ausência de alternativas.” (2021, p. 124).


Segundo Esslin, será justamente essa precariedade da linguagem, juntamente com um sentimento de descrença em relação ao progresso científico e tecnológico que vinha se evidenciando desde o período da guerra, que servirá de base para a construção de uma atitude antiteatral e antirrealista que esses dramaturgos do chamado Teatro do Absurdo imprimirão em suas obras:


A principal característica dessa atitude é a da sensação de que certezas e pressupostos básicos e inabaláveis de épocas anteriores desapareceram, foram experimentados e constatados como falhos, foram desacreditados e são agora considerados como ilusões baratas e um tanto infantis. O declínio da fé religiosa foi disfarçado até o fim da Segunda Guerra Mundial pelas religiões substitutas como a fé no progresso, o nacionalismo e várias outras falácias totalitárias. Tudo isso foi estraçalhado pela Guerra. (2018, p. 19)


Portanto, a narração em primeira pessoa de “O fim” serve à caracterização da personagem, que tem como marca, justamente, a dificuldade de comunicação:


A escolha do ponto de vista [primeira pessoa] foi fundamental para o tratamento de temas caros a Beckett neste período como a opção por ater-se à impotência humana e a busca por um empobrecimento da linguagem. A forma encontrada foi colocar o discurso na boca de um sujeito desconfiado das palavras e consciente das suas dificuldades de comunicação. (GONÇALVES, 2019, p. 45)


É a expressão perfeita do herói derrotado, que nada realiza:


O “herói” beckettiano acompanha a linha de heróis romanescos que, já no século XIX, na visão expressa por Lukács em “O romance como epopeia burguesa”, começam a aparecer como “derrotados” em suas empreitadas, um sintoma da falência da sociedade burguesa. (Ibid., p. 42)


Já em Esperando Godot, ver e ser visto, em um diálogo, não funciona mais, e portanto a existência destes seres postos no palco vacila. Vladimir e Estragon se apegam aos pequenos pensares para existirem, uma vez que suas consciências, e também a dos outros, parecem trazer poucas garantias. Como diz Estragon (p. 88), “Estamos sempre achando alguma coisa, não é, Didi, para dar a impressão de que existimos?”. Como analisa Andrade (2001, p. 20):


A problematização da consciência, do porto seguro a partir do qual se espraia a razão humana, assume o caráter de dissecção crítica dos fundamentos que sustentam a voz em primeira pessoa da ficção ocidental. Perceber e ser percebido, atributos com os quais o eu se define, são postos em xeque.


NOTAS


[1] Essa e as demais menções à novela “O fim” são de: BECKETT, S. Novelas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Eloisa Araújo Ribeiro (trad.).


[2] Esta e as demais referências a Esperando Godot são de: BECKETT, S. Esperando Godot. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Fábio de Souza Andrade (trad.).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ANDRADE, F. S. “Godot em dois tempos”. In: BECKETT, S. Esperando Godot. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, pp. 121-135.


ANDRADE, F. S. “Matando o tempo: o impasse e a espera”. In: BECKETT, S. Fim de Partida. São Paulo: Cosac Naify, 2002, pp. 7-31.


ANDRADE, F. S. O Silêncio Possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.


ANDRADE, F. S. “Prefácio”. In: BECKETT, S. Novelas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. VII-XIV.


BECKETT, S. Esperando Godot. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Fábio de Souza Andrade (trad.).


BECKETT, S. Novelas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Eloisa Araújo Ribeiro (trad.).


BERRETTINI, C. Samuel Beckett: Escritor Plural. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

ESSLIN, M. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.


GONÇALVES, L. B. Um narrador no limite: o caminho da primeira pessoa beckettiana das Nouvelles aos Textes Pour Rien. 2009, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.


McDONALD, R. “Esperando Godot e o impacto cultural de Beckett”. In: BECKETT, S. Esperando Godot. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, pp. 136-157.


PRADO, D. A. “A personagem no teatro”. In: CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2014 (13ª edição), pp. 81-101.

 

Citação: DEARO, Guilherme. "Sem forças para continuar: personagens em Samuel Beckett". São Paulo: FFLCH/USP, Dezembro de 2022.

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