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  • Guilherme Dearo

Sobre as estratégias do tradutor e um exemplo em Philip Roth

Atualizado: 28 de jun.

Sobre as estratégias do tradutor: a tradução literária e um exemplo de “O Complexo de Portnoy”, de Philip Roth


Na visão do poeta e tradutor Paulo Henriques Britto (1951) em “A tradução literária”, a tradução de textos “segue determinadas regras que constituem o que podemos denominar de ‘jogos de tradução’” (BRITTO, 2016, p. 28). Segundo ele, entre as regras estão: o tradutor deve pressupor que o texto tem uma pluralidade de sentidos específicos; e ele deve produzir um texto que possa ser lido como “a mesma coisa” que o original e deve reproduzir efeitos de sentido, estilo, som, etc. (BRITTO, 2016, pp. 28-29). Para o autor, “o tradutor tem a obrigação de se esforçar ao máximo para aproximar-se tanto quanto possível da inatingível meta de fidelidade” (BRITTO, 2016, p. 37).


Para tal, Britto cita duas estratégias. A primeira consiste em o tradutor se fazer duas perguntas: “A primeira é quais as características mais importantes do texto, que devo tentar recriar de algum modo? E a segunda: quais as características do texto original que podem de algum modo ser recriadas?” (BRITTO, 2016, p. 50). Ou seja, a questão é identificar o que é crucial de se preservar do texto de origem, mas contrapor com o que, de fato, será possível de recriar. A segunda estratégia, vinda de Henri Meschonnic (1932-2009), aconselha traduzir o marcado pelo marcado, o não marcado pelo não marcado. Britto explica: “a todos aqueles elementos do texto original que um leitor nativo consideraria convencionais e normais devem corresponder, na tradução, elementos encarados do mesmo modo pelos leitores da língua-meta. Por outro lado, toda vez que o autor do original utiliza algum recurso inusitado, destoante, desviante, que chama a atenção do leitor - é o que estamos chamando de ‘marcado’ -, cabe ao tradutor utilizar na tradução algum elemento que suscite no leitor nativo da língua-meta o mesmo grau de estranhamento (...)” (BRITTO, 2016, p. 67).


Francis Henrik Aubert também analisa algumas estratégias de tradução, classificando tipos no artigo “Modalidades de tradução: teoria e resultados” - modalidades essas aplicadas de modo único ou simultâneo, a depender das estratégias adotadas e dos objetivos a serem atingidos. Aubert elenca alguns tipos como: empréstimo (segmento textual do texto fonte reproduzido no texto meta com ou sem marcadores específicos de empréstimo, como termos e nomes próprios); tradução literal (tradução palavra-por-palavra; mesmo número de palavras, na mesma ordem sintática, com mesmas categorias gramaticais); e transposição (não é igual à literal em determinado aspecto: não tem mesmo número de palavras, ou não segue ordem sintática) (AUBERT, 1998, pp. 106-107).


O romance “Portnoy's Complaint” (1969), de Philip Roth (1933-2018), oferece alguns exemplos das estratégias de tradução adotadas na prática. O livro foi traduzido no Brasil por Britto, que faz o que Roman Jakobson chama de tradução interlingual, “tradução propriamente dita [que] consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua” (JAKOBSON, 2001, p. 65). Em certa passagem do romance, repleto de conteúdo sexual explícito e humor, Britto traduz para o português: “Seu escroto parece um rosto comprido e encarquilhado de um velho com um ovo enfiado em cada lado da papada caída - já o meu lembra mais uma bolsinha mínima e rosada pendurada do pulso de uma boneca de menina. Quando ao shlong dele, a mim, que tenho um pinto do tamanho da ponta de um dedo mínimo, ao qual minha mãe gosta de se referir em público (está bem, foi só uma vez, mas bastou essa vez para durar a vida inteira) como a minha ‘coisinha’, o shlong dele me faz pensar nas mangueiras de incêndio que ficam enrodilhadas nos corredores da escola. Shlong: de algum modo a palavra capta com exatidão o que nele há de brutal, de carnudo, que tanto admiro, aquele pedaço vivo de mangueira, irracional, pesado, inconsciente, do qual sai uma torrente de urina espessa e forte como uma corda - enquanto do meu emana um fiozinho amarelo fino a que minha mãe dá o nome de ‘pi’” (ROTH 2018: 52-53).


Podemos observar nesse excerto que Britto usou algumas estratégias citadas por ele próprio em seu livro de 2016 e citadas por Aubert no artigo de 1998. Primeiramente, ele fixa os elementos que precisam ser preservados do texto de Roth. Coloquialismo e vocabulário pouco elevado, misturados a uma fala mais formal, são essenciais no personagem Alexander Portnoy e devem ser mantidos na tradução. Para tal, ele segue o princípio do “marcado e do não-marcado”. Se no original (ROTH, 2005, p. 311) Roth escreve “with that fingertip of a prick”, Britto mantém a expressão chula e traduz para “que tenho um pinto do tamanho da ponta de um dedo mínimo”, mantendo o coloquial “pinto” em vez do formal “pênis”. Se no original Roth descreve a urina de Portnoy, fraca, como “a sis” (uma variação inventada de piss, urina), Britto faz o mesmo e cria o “pi” (de “pipi”, “xixi”). O tradutor também mantém acertadamente a expressão hebraica shlong (pênis) na tradução, e destacada em itálico, conforme Roth faz no original, já que o livro está repleto de expressões da comunidade judaica. Ele opta, assim, pelo “empréstimo” explicitado por Aubert. Também, se vale da transposição, já que traduz sentenças mudando número e ordem de palavras, assim como a construção sintática. O trecho “(...) while I deliver forth slender yellow threads that my euphemistic mother call ‘a sis’” se transforma em “enquanto do meu emana um fiozinho amarelo fino a que minha mãe dá o nome de ‘pi’”. Britto não traduz “I deliver” por “Eu urino”, mas por “enquanto do meu emana”, mudando a sintaxe. Também, omite em sua tradução que Portnoy chama a mãe de “euphemistic”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AUBERT, F. H. "Modalidades de tradução: teoria e resultados". TradTerm, São Paulo, v.5.1, pp. 99-128, 1998.


BRITTO, P. H. A Tradução Literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 2ª edição.


JAKOBSON, R. "Aspectos linguísticos da tradução". In: _____. Linguística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein; José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2001 [1959]. pp. 63-72.


ROTH, P. Novels 1967-1972. When She Was Good / Portnoy’s Complaint / Our Gang / The Breast. New York: The Library of America, 2005.


ROTH, P. O Complexo de Portnoy. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

 

Citação: DEARO, Guilherme. "Sobre as estratégias do tradutor: a tradução literária e um exemplo de 'O Complexo de Portnoy', de Philip Roth". São Paulo: FFLCH/USP, julho de 2021.

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